Villas&Golf – Entrevista a Isabel Barros

Villas&Golf – Entrevista a Isabel Barros

Marionetas do Porto – Entrevista a Isabel Barros
1. O Teatro das Marionetas do Porto foi a realização de um sonho de João Paulo Seara Cardoso, correcto? Na altura, qual era a ideia orientadora da criação deste Teatro? João Paulo não queria um teatro de massas, não era assim?
– A Companhia foi criada em 1988, numa data simbólica, com a estreia de Miséria, espetáculo emblemático do João Paulo, no Festival Mundial de Marionetas em Charleville-Mézières. Nesse ano Miséria é apresentado no Teatro de Belomonte, ainda em obras e assinala dessa forma o início de uma história que tem dado muitas e belas histórias. A criação da companhia marca uma vontade de criar no Porto uma estrutura de criação de carácter contínuo, um trabalho que pela sua especificidade nunca seria para “massas”, contudo passou a ser para muito público. Diria que o sonho aparece mais tarde, com toda a matéria criada, o João Paulo ao fim de alguns anos começou a sonhar com um Museu. Considero esse o grande sonho, pela beleza da partilha e pela possibilidade de inscrever a sua obra de uma forma tão especial na Cidade.
2. De acordo com a história da vossa companhia, foram os Dom Robertos que inspiraram a criação deste projecto. A riqueza do património popular era o mais importante para João Paulo? Eram essas tradições mais populares que o inspiravam?
– Antes da criação da companhia, o João Paulo teve várias experiências na área do teatro. O seu encontro com o mestre António Dias, aconteceu quando o João Paulo trabalhava no FAOJ, onde era responsável pelas áreas do teatro de marionetas, a etnografia e a música. Nas suas viagens em contexto de trabalho a influência do teatro popular acaba por o apaixonar e dedica-se a partir daí a estudar o teatro nas suas formas mais tradicionais. Sabendo que o Mestre António Dias era dos últimos bonecreiros vivos, o João Paulo deslocou-se a Lisboa para o conhecer e aprender com ele a arte dos Robertos.
A importância que o João Paulo dava à tradição era muito séria, daí o enorme trabalho de pesquisa que realizou nunca abandonando o seu Teatro Dom Roberto, com o qual viajou pelo Mundo, nessa forma mais portátil, popular diria até despretensiosa, que marcou tantas gerações de atores/bonecreiros que tiveram o privilégio de ter contacto com o João Paulo.
O teatro Dom Roberto foi apresentado pela última vez em 2010, poucos meses antes do João Paulo morrer, no maior entusiasmo e vivacidade que tanto o caracterizavam.
3. Tudo o que é hoje o Teatro das Marionetas deve-se a João Paulo? Podemos assumir que foi João Paulo que introduziu uma nova linguagem às marionetas, trazendo o actor para a cena também?
– Considero que o João Paulo foi um Mestre do teatro e do teatro com marionetas. Pela sua forma de ser inquieta e perfeccionista, explorou muitas possibilidades e formas de criar, trabalhando com equipas especializadas e capazes de dar resposta à sua enorme criatividade.
Cada espetáculo era uma nova aventura, um novo campo de possibilidades. A presença dos atores, surgiu naturalmente pela necessidade absoluta de um trabalho muito exposto, e na maior parte das vezes com manipulação à vista.
Penso sobretudo que o João Paulo criou uma “escola”, tendo tocado fortemente nos atores que trabalharam com ele diretamente, mas também nos criadores e outros artistas que acompanharam o seu trabalho, o qual desde cedo circulou em Portugal e no estrangeiro, deixando marcas, que hoje continuam a ser reconhecidas.
4. Podemos considerar que um dos princípios básicos da actuação do Teatro das Marionetas do Porto é mostrar que as marionetas não são só para crianças?
– Sim, sem dúvida. O Teatro de Marionetas do Porto desde a sua criação até hoje apresenta espetáculos para todos. Uns especialmente criados a pensar nos mais miúdos e outros nos mais graúdos. A diferença entre uns e outros é que os primeiros são na verdade para todos e os segundos, normalmente pelas temáticas, são mais aconselhados a maiores de 12 ou 16 anos.
Esta linha de trabalho caracteriza a nossa história, que tem sido feita por Universos distintos, mas sempre numa busca poética e de beleza.
Ao longo de vários anos, as criações para os mais novos partiram de peças escritas pelo João Paulo, encenadas por ele e que hoje se mantêm presentes através dos livros, mas também através do reportório da companhia.
5. Há um espectáculo considerado marcante no percurso da companhia: Miséria. Em que consistia esse espectáculo?
– Miséria é sem dúvida um espetáculo emblemático por várias razões. Marca o verdadeiro inicio do próprio Teatro de Marionetas do Porto, conforme já referi, estreando o espaço sede da companhia, o Teatro de Belomonte. Miséria foi estreado em 88 numa edição do Festival Mundial de Marionetas em Charleville Mézières, estreia marcante e que deu origem a muitos convites. A partir desse momento o João Paulo foi convidado para apresentar o espetáculo em muitos festivais e a partir daí começou rapidamente a ser conhecido internacionalmente.
Miséria é baseado num conto popular. Um pobre ferreiro chamado Miséria tenta enganar a Morte e é assim condenado à eternidade.
Foi considerado pela crítica uma obra-prima do teatro de marionetas e do teatro, pela sensibilidade e beleza com que o João Paulo encenou e interpretou este conto.
Miséria integra a exposição permanente do Museu das Marionetas do Porto.
6. Como é que a Isabel se envolve com o Teatro das Marionetas? O que mais a fascina neste mundo das Marionetas?
– As marionetas chegaram à minha vida em 1993, com o João Paulo. Vivem em mim sempre ligadas a uma grande paixão e uma bela história de amor. Em 1994, o João Paulo tinha o desejo de criar um espetáculo de cruzamento e os dois fizemos essa maravilhosa experiência que resultou no espetáculo 3ª Estação. Um espetáculo poético, com bailarinos e atores, muito experimental e de cruzamento entre a dança e as marionetas. Viajamos com esse espetáculo e foi surpreendente e muito marcante.
A partir desse momento trabalhei em praticamente todas as criações do João Paulo, como coreógrafa, na direção do movimento, gestualidade e coreografia das peças.
As marionetas acompanham-me desde essa altura sem perder o encanto.
Gosto de lhes chamar criaturas, no sentido de uma imagem que tenho das marionetas como seres de silêncio e profundamente enigmáticos. Seres que não morrem, ou que morrem temporariamente. Criaturas a quem emprestamos a viva para que o mundo se eleve. São também seres com asas, têm a capacidade de realizar o sonho dos humanos, voar, suspender no ar, não ter peso. Há nas marionetas muita dança, e de alguma forma isso também me fascina.
7. Foi a Isabel que trouxe a dança às marionetas. Como é que foi esta fusão? Eram áreas facilmente complementáveis?
A resposta a esta questão está contida na anterior. Foi sem dúvida o encontro entre mim e o João Paulo, num momento muito especial para os dois que lançou uma nova ideia, novas possibilidades para a criação com as marionetas. Foi um encontro, eu diria explosivo, no sentido de não ser pacífico, ser muito complexo e pleno de tensão, mas muito transformador pela paixão que nos uniu e pela vontade de romper e de arriscar que tanto partilhávamos. Penso que a forma diversa como sentíamos o mundo e a criação foi profundamente estimulante nas formas que demos à vida.
8. Quando João Paulo parte, há uma mudança no percurso da companhia? Ou a linguagem manteve-se?
Em Outubro de 2010, após a morte do João Paulo, eu não hesitei em relação à absoluta necessidade de continuar com uma obra tão profunda que ele tinha criado. Com a equipa do Teatro de Marionetas do Porto, sem interrupção, finalizamos um espetáculo que não foi terminado pelo João Paulo e que ao retomar os ensaios, o fizemos em sua homenagem, falo de Frágil, uma peça para crianças estreada em 2011.
O trabalho desde esse momento continua com uma forte marca, essa marca tem um nome: Marionetas do Porto, criada pelo João Paulo e que será sempre para quem vamos em primeiro lugar dedicar o trabalho que realizamos. Mas a mudança é também um fator presente no nosso trabalho, e por isso criamos um espaço para a nova criação com encenações que trazem outros universos, refiro-me às encenações que tenho feito mas também às encenações partilhadas em coletivo ou a solo, é o caso da última, Barba Azul, com encenação de Rui Queiróz de Matos.
9. Com o mestre António Dias, último representante da geração de bonecreiros itinerantes, João Paulo aprendeu a arte de construir as marionetas, correcto? Mas hoje, as marionetas utilizadas nos espectáculos são elaboradas por quem?
Sim, o contacto com o Mestre António Dias foi muito importante para o João Paulo na aprendizagem e técnicas de construção dos Robertos. Mas todos os restantes espetáculos partiram para outro tipo de marionetas, que não as de luva. Muitos artistas são convidados para criarem as marionetas que depois são construídas por outros artistas na nossa oficina no Teatro de Belomonte. Além do próprio João Paulo, outros artistas fazem parte da criação de marionetas dos diversos espetáculos, nomeadamente: Rosa Ramos, Étienne Champion, Rui Pedro Rodrigues, Júlio Vanzeler, João Vaz de Carvalho e outros.
10. Os espectáculos levados a cena pela vossa companhia são adaptados de obras literárias reconhecidas, correcto? De que tipo de obras? Pode dar-nos alguns exemplos?
– Os espetáculos para os mais miúdos partiram sobretudo de obras originais escritas pelo João Paulo, é o caso de Óscar, A Cor do Céu, Como um Carrossel à Volta do Sol, Os bichos do Bosque, entre outros. Outros espetáculos foram criados a partir de universos diferentes, como exemplo, uma das últimas criações que encenei, Pelos Cabelos, criada a partir do Universo de ilustrações de João Vaz de Carvalho.
Nos espetáculos para adultos, há também diversas formas, podem partir de textos e adaptações de textos, recorrendo a autores muito diversos como, William Shakespeare, Heiner Muller, Anais Nin, Beckett, ou a universos que inspiram a criação, por exemplo a pintura de Magritte. Cada criação é sobretudo um laboratório de experiências, que provocam e colocam novos desafios a todos os níveis, os textos a ausência deles integra essa dinâmica.
11. E peças originais, escritas pela própria companhia, fazem?
– Sim, esta resposta está na resposta anterior, essa ligação existe e é uma marca da companhia, difícil de voltar a ter a mesma força, uma vez que era o João Paulo quem escrevia as peças para os mais pequenos.
12. Neste momento, quantos são os elementos que pertencem à companhia? Para além de elementos fixos, costumam contar com a ajuda de elementos externos, correcto?
– A companhia tem sete pessoas que trabalham em regime de continuidade, mais dois atores que após um período de estágio estão já a trabalhar praticamente em contínuo entre ensaios, apresentações e circulação quer das novas peças, quer do repertório. Além do corpo fixo, há um grande número de colaboradores contratados em função das criações e plano geral de trabalho do teatro e do museu.
13. Os figurinos são criados por quem?
Os figurinos são criados por artistas convidados que por vezes também trabalham a cenografia ou as marionetas, depende de cada projeto. Os figurinos são sempre muito especiais, e desenhados para os atores e para as marionetas. O figurinista é sempre alguém que tem uma compreensão do conceito do espetáculo, essa tem sido também uma marca nas peças do Teatro de Marionetas do Porto, ou seja, as equipas em cada peça têm um forte diálogo sobre a criação. Refiro-me a todos os colaboradores, figurinistas, cenógrafos, desenhadores de luz, músicos, técnicos e toda a equipa de construção.
14. Normalmente, o processo de criação de um espectáculo – tendo em conta escolha de textos, desenho de marionetas e a sua respectiva construção, a confecção dos figurinos e construção de cenários -, demora quanto tempo?
– Cada Nova criação tem um trabalho de preparação prévio, que se inicia normalmente com um ou mais anos de antecedência. A partir do momento de início dos ensaios, em média cerca de 4 meses de trabalho, numa relação intensa entre trabalho de estúdio/ensaios e trabalho de oficina/construção. A duração de todo o processo varia apenas em função da dimensão/complexidade do espetáculo.
15. Neste momento, para além do seu cargo na direcção artística da companhia, a Isabel contínua envolvida com outros projectos?
– Eu sou co fundadora e diretora do balleteatro, projeto de vida que muito me apaixona por várias razões e no qual nunca deixei de trabalhar. O balleteatro é um centro de artes performativas, com uma forte componente de criação e formação. Sendo um projeto muito diferente concilio com facilidade mas também com muita organização pessoal. Deixei de dar aulas no Ensino Superior, fazendo-o apenas em regime pontual. Como coreógrafa sou convidada várias vezes para criações, que sempre que é conciliável aceito.
16. O Museu das Marionetas, criado recentemente, era um dos sonhos de João Paulo. O que podemos lá encontrar?
– O Museu das Marionetas do Porto fez três anos dia 3 de Fevereiro de 2016. É um Museu de autor e um sonho de João Paulo Seara Cardoso (1956-2010),  é e será sempre um espaço de inscrição do trabalho realizado e sempre em atualização do universo poético do fundador e das marionetas do Porto.  Do museu fazem parte a exposição permanente, composta por Miséria e Teatro Dom Roberto e as exposições temporárias com peças de cenografia, marionetas, cartazes e documentários do Teatro de Marionetas do Porto.
A relação teatro/museu, ou seja marionetas com existência teatral, vistas em contexto cénico, com alma, mais tarde revistas no seu estado de vida latente no museu, e o contrário, torna o projeto do Museu muito peculiar e sempre em renovação.
17. O Museu trouxe mais visibilidade à companhia?
– A companhia tem um público diria fiel, porque acompanha os espetáculos e incentiva-nos há muitos anos. É um público que cresce connosco, e que passa e atravessa gerações, isto é muito curioso. Com a abertura do Museu o que aconteceu foi a descoberta da Companhia por outro público que ao visitar o Museu desperta para um universo da marioneta contemporânea. Nessa experiência de descoberta fica motivado para ver espetáculos e com curiosidade de ver o nosso trabalho ao vivo. A relação teatro/museu, conforme referi é muito especial e também revitaliza, tem sido como era o nosso propósito, um fator que distingue o projeto.
Como o Museu está situado no Centro Histórico do Porto, destaco também o enorme apreço dado pelos turistas que visitam o Museu das Marionetas do Porto e deixam mensagens belíssimas.
18. Em termos de apoios, o Teatro das Marionetas do Porto recebe financiamento de que entidades? A Isabel considera que esses apoios são suficientes?
– O Teatro de Marionetas do Porto é uma estrutura financiada pela DGARTES. Além desse apoio, trabalha muito com co produções com vários parceiros da cidade e do país. Entre eles estão redes de teatros e teatros . Os parceiros têm sido fundamentais sempre, mas em especial nestes últimos anos em que os cortes nos financiamentos foram muito acentuados a par da crise económica do País. Nestas novas parcerias, de carácter pontual, nomeadamente com Porto Lazer ou União das Juntas de Freguesia de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde o Teatro de Marionetas do Porto tem encontrado uma certa forma de trabalhar o futuro. Refiro-me a sinergias que se trocam e promovem novas formas de pensar e viver a cidade. A Companhia tem um trabalho intenso, bem articulado  ao nível da direção e da produção. De destacar a boa capacidade de gerar receitas, através de venda de espetáculos, entradas no museu, leituras encenadas, museu em movimento, programas de criação com a comunidade, ou seja nas suas diversas formas de prestar serviço através do teatro.
19. Neste momento, na lista de actividades desenvolvidas pelo Teatro das Marionetas encontram-se espectáculos agendados, exposições e visitas ao museu, correcto? Que espectáculos e exposições destaca?
– No Museu, até final de Agosto estará presente a exposição Make LOve Not War. A exposição pode ser vista em visitas livres ou guiadas. Relativamente aos espetáculos, em Abril estreia Kitsune,  a partir de um conto de Júlio Vanzeler, para maiores de 12 anos, uma co produção com o Teatro Constantino Nery em Matosinhos.
Em circulação temos vários espetáculos, Barba Azul, Pelos Cabelos e Óscar, são alguns que estão a ser apresentados nos próximos meses . Em Junho estaremos presentes no Serralves em Festa num formato muito especial.
20. Os espectáculos ocupam que tipo de palcos? Pode dar-nos alguns exemplos de palcos nacionais e, quiçá, internacionais?
– Temos espetáculos criados para espaços/palcos de várias dimensões. Os mais pequenos, normalmente estreados no Teatro de Belomonte, teatro de bolso com um palco de pequena dimensão e com uma relação muito próxima com o público., que depois circulam em palcos de tamanho semelhante; os de formato médio e os de grande formato. O Teatro de Marionetas do Porto é uma companhia com um número elevado de apresentações em itinerância, pelo que praticamente já foram apresentados espetáculos na maior parte dos teatros em Portugal de Norte a Sul, o que tem sido um gosto imenso pela proximidade e excelente recetividade com o público do País. Anualmente participamos também nos diversos Festivais Internacionais de Teatro de Marionetas, quer em Portugal, quer no Estrangeiro.
21. A Isabel, como directora artística da companhia, anseia ver o Teatro das Marionetas mais reconhecido ainda? Qual é o seu sonho futuro?
– O meio maior desejo sempre,  é que o trabalho do Teatro de Marionetas do Porto continue a surpreender e a encantar o público.
De momento não tenho sonhos, apenas alguns desejos para as Marionetas do Porto. Com as mudanças rápidas da vida atual e com a forte atração turística em relação ao Porto e ao Centro Histórico, um dos grandes desejos relaciona-se com a necessidade de proteção.
Ao longo deste ano o Museu das Marionetas do Porto irá sair da Rua das Flores, do imóvel alugado em 2002 e onde há 3 anos abrimos o Museu. Esta mudança motivada pela venda, surge na sequência do interesse repentino em relação ao atual potencial comercial da Rua das Flores.
Assim, desejo que possamos ter alguma proteção em relação ao futuro, uma vez que a sede do Teatro de Marionetas do Porto é no Centro Histórico do Porto.
O desejo de proteção é o desejo de ter alguma serenidade, para que o futuro seja futuro.
Isabel Barros
Diretora Artística