Intérprete espectador

Intérprete espectador
O meu primeiro grande contacto com as marionetas aconteceu em 1994, numa experiência inesquecível de cocriação de 3ª Estação com João Paulo Seara Cardoso.
Essa experiência foi um grande desafio como intérprete e coreógrafa de um espetáculo que cruzou a dança e as marionetas tendo contribuído para uma  uma diferente forma de abordar o trabalho de movimento com as marionetas.
Talvez por ter começado com uma marioneta de escala humana, que exigiu um trabalho forte de relação entre um corpo vivo e um corpo a quem emprestamos temporariamente vida, tenha ficado sempre com uma noção de profunda consciência como espectadora em tempo real. Observar o detalhe, a direção, o impulso, estar presente e ausente no corpo da marioneta.
Desafiar os meus limites e aumentar os limites e as possibilidades da marioneta. Voar e suspender sem descolar do chão, são experiências de movimento quase diria de projeção do meu corpo no corpo que estou a observar e em simultâneo a contribuir para que ele realize aquilo que desejo e eu/corpo não posso materializar.
Meyerhold chamava às marionetas maravilhas teatrais. E são na verdade as marionetas que introduzem deslumbramento no ato teatral. Têm qualidades de movimentos essenciais, não imitam nada, são, ou seja não fazem de conta, eles são com toda a sua aparência o personagem. As marionetas são desafetadas, despojadas. O corpo vivo do ator é demasiado presente, a marioneta permite a distância, um maior espaço de imaginação para o público.
No meu imaginário, as marionetas não falam, são seres de leveza que através do movimento desenham poemas. São seres sem carne, capazes de viver e morrer com a mesma sensibilidade com que se movem.
As marionetas, através do movimento, transformam-se em metáforas teatrais.
Libertas dos constrangimentos funcionais do corpo humano, as marionetas são capazes  de transportar o público para lugares mais surreais, atingindo o universo dos sonhos, nomeadamente através do voo, ou das suspensões no ar. O corpo humano realiza através do movimento com marionetas o nível da impossibilidade, fazendo-o como espectador.
Todo o trabalho de movimento com marionetas exige uma relação de atenção, foco, exige compreensão do ator em relação à matéria, independente de ser em pequena ou grande escala. O trabalho de detalhe com as marionetas de pequena escala é precioso, pela delicadeza necessária ao mínimo gesto.
Diria que, emprestar vida é um ato de entrega generoso e belo e só possível com uma profunda consciência de si.
 O ator/marionetista será tanto mais feliz, quanto conseguir atingir essa relação de corpo que observa e empresta movimento realizando o que é suposto para aquela marioneta, naquele momento.
E Voar é o limite máximo, é a realização do desejo do próprio corpo.
A plasticidade do corpo do Ator,  terá todo o reflexo no corpo/movimento da marioneta, é nessa linha de olhar atento que também me coloco enquanto coreógrafa e quando faço direção de espetáculos com marionetas.
ISABEL BARROS
Texto publicado na revista 15 anos do FIMFA
Maio 2015