Encontro de Literatura InfantoJuvenil – Pombal

Devo começar por dizer que não sou um escritor por vocação mas por necessidade. Grande parte da escrita que tenho realizado foi motivada por necessidades cénicas, o que significa que escrevo sempre com a ideia de que os textos irão ser representados. Nesta questão, a da escrita teatral, e consequentemente das relações entre o texto e a representação, pode residir o interesse de eu me encontrar hoje aqui e procurarei que esse seja o tema da minha reflexão.

Os textos que escrevi nos últimos anos foram sempre elaborados no decurso dos ensaios das peças que me encontrava a dirigir no Teatro de Marionetas do Porto. São portanto escritas com algumas motivações fundamentais.

A ideia nasce como é óbvio ligada ao desejo de fazer um espetáculo. O que quer dizer que, a narrativa é objetivamente pensada para que possa ser encenada, e daqui extraio um pressuposto fundamental, para mim muito importante que é a questão da eficácia teatral. Será este porventura o principal problema de muitas das peças de teatro que atualmente se escrevem que, muitas das vezes, revelam uma certa desadequação em relação aos anseios dos criadores teatrais e do próprio público. Tenho um entendimento muito particular do texto teatral e da sua função no universo dos signos teatrais que, porventura, não será muito consentânea com o espírito deste encontro de literatura. O teatro convencional assenta na ideia do primado do texto. A minha conceção de teatro assenta no primado das ideias; e as ideias podem ser palavras, mas também sentimentos, música, imagens, memórias, sentires, enfim, inquietações interiores passíveis de serem transformadas em material de criação. No conceito convencional de teatro o próprio texto já é considerado teatro; e, noutros tempos, alguém a que se chamava ensaiador limitava-se a determinar as posições dos atores na cena e a faze-los respeitar os estados de alma que o autor teatral profusamente descrevia nas entrelinhas dos diálogos, as chamadas didascálias. Assim foi durante muitos séculos antes que se verificasse a ascenção de um novo protagonista do processo teatral: o encenador. A ele compete fazer uma leitura do texto não só em termos estéticos mas também de adequação às suas ideias e ao seu tempo. Só assim o teatro contemporâneo se pode constituir como espaço de reflexão sobre a condição humana num mundo povoado por linguagens de comunicação imediatistas e muitas vezes estéreis, as linguagens audiovisuais, que encontraram fácilmente o registo naturalista, registo que, na minha opinião, o teatro deve rejeitar. Um teatro que se aproxime da realidade, que não procure mover-se em universos artificiais, duplos da própria vida, espelhos deformados que nos dão retorno da matéria incandescente de que é feita a vida, as paixões, é um teatro condenado, um teatro que não se consegue libertar do limbo do arcaísmo que releva de ser uma arte ancestral. Considero que, no limite, o texto teatral se encontra no mesmo nível dos outros signos que constituem a comunicação teatral, ou seja, o texto tem que ser entendido tão necessário como a cenografia, os sons, as vozes , as luzes, as cores, o movimento dos atores… Eis porque, como criador teatral, gosto de conceber a escrita a par da construção do espetáculo. Este processo tem também as suas limitações e os seus inconvenientes. Podemos facilmente cair numa escrita pouco elaborada, demasiado ligada às necessidades da cena e sem a lucidez que traz o distanciamento, de que pode resultar uma frágil arquitetura teatral. Por outro lado, a grande vantagem será deixar um espaço de respiração para as outras linguagens da cena e, na maior parte das situações conseguir que as imagens complementem ou mesmo substituam as palavras. Estamos no tempo do teatro da imagem e não mais no tempo do teatro radiofónico.

A minha experiência neste campo passou também pela função de dramaturgo, ao fazer a adaptação de textos não teatrais para o palco. Curiosamente, as duas obras que considero como as referências fundamentais da literatura para a infância do século vinte: Alice no País das Maravilhas e Winnie the Pooh. Aqui, trata-se de um trabalho de dramaturgia que implica em muitos casos reescrita e as dificuldades são mais de ordem ética ou, se quisermos, têm a ver com o receio de atraiçoar, pela adaptação, obras que consideramos geniais. Mas ao fim de algum tempo tudo parece resolver-se naturalmente, no momento em que conseguimos embeber-nos no texto e atingir os seus subterrâneos, ou sejam, as motivações profundas do autor. Para se ter uma noção da dimensão desta questão e das implicações que pode ter, posso dizer que na adaptação de uma das maiores obras da literatura dramática mundial, Macbeth, de Shakespeare, o texto original, que tinha 200 páginas, foi reduzido para 90, sem que, em minha opinião, se tenha perdido o espirito profundo da peça, uma história atualíssima sobre a perversão do poder e o poder do amor. Habitualmente os autores são muito ciosos das suas obras e não compreendem a necessidade dos criadores teatrais se apropriarem delas, de fazerem a sua própria leitura. Tudo se torna mais fácil quando os autores não são vivos como eram os casos que referi.

Gostaria agora de abordar algumas questões que têm a ver com o fato de se escrever para um publico jovem. Para já os problemas inerentes à escrita tenham ou não uma finalidade teatral. Considero que a grande questão, tantas vezes discutida, consiste em, não deixando de nos posicionarmos no nosso ponto de vista de adultos encontrar um registo ficcional ajustado ao universo da infância. Muita da literatura infantojuvenil não consegue resolver esta aparente contradição. Vemos por vezes obras que utilizam as palavras e as ideias de uma forma infantilizante, com desajustadas preocupações pedagógicas e moralizantes, de autores que não compreendem que um conto é uma obra de arte e por isso uma reflexão de ordem estética sobre a condição humana, designação na qual se incluem as crianças, e por outro lado autores que a coberto de uma linguagem mais ou menos lúdica, próxima de um devaneio pessoal, intitulam as suas obras de literatura para a infância. Creio sinceramente que nós, os criadores não nos devemos arvorar em educadores ou arautos da moral, mas em fazedores de caminhos. Caminhos que se situam longe dos itinerários principais, caminhos do sonho que levam a lugares fantásticos onde as crianças escavam, com as suas próprias mãos a arca do seu tesouro. Neste delicado processo, compete-nos ser apenas ajudantes. As crianças buscam nas histórias peças de um puzzle muito complicado que se chama crescimento. E a função verdadeira de uma obra de arte, seja ela uma pintura, um filme, uma peça de teatro ou um livro, é a do apaziguamento, a de encontrar uma harmonia entre o nosso desassossegado mundo interior e o outro que está lá fora.

Mas, como contrariar um certo formalismo convencional da escrita e ao mesmo tempo encontrar fórmulas novas, consistentes, que aproximem o texto das novas exigências da prática teatral. Embora não tenha respostas para um problema que constitui uma das minhas reflexões permanentes, proponho-vos falar de uma experiência que tive no campo da escrita teatral, o espetáculo Óscar, uma produção do Teatro de Marionetas do Porto, cujo texto será editado num dos próximos meses.

ÓSCAR

Partimos para a construção deste espetáculo sem nenhuma ideia de base, aliás uma prática que me é particularmente cara e que frequentemente nos leva a percorrer caminhos desconhecidos para chegar a lugares bonitos, e a criação foi-se desenvolvendo a partir de improvisações e de ideias que iam sendo lançadas no decurso dos ensaios. O texto que surgiria mais tarde, reflete claramente este processo.

Recordo-me que, a certa altura, surgiu a primeira ideia estruturante do texto: dividi-lo em quatro partes que seriam as quatro estações do ano (o que não é muito original), após se terem definido outros elementos fundamentais: que o lugar da ação seria um jardim, que o personagem principal seria um menino chamado Óscar e que a ação consistiria nas relações do Óscar com uma série de personagens imaginários que surgiriam no espaço do jardim. Num contexto destes tentei que o texto nascesse de estímulos sensoriais. E isso só foi possível num regime de trabalho íntimo com os atores a partir de experiências com palavras que eu ia registando e compondo até se chegar a uma espécie de poema sensorial representativo de cada estação do ano. O ritmo, a cor, a sonoridade, o cheiro, a musicalidade das palavras teria um valor pelo menos igual ao seu significado. O que resultou deste processo foi uma espécie de partitura de música e palavras para três vozes. Para que isto seja mais compreensível vou ler o texto da primavera:

Plim plim plim
Sol chuva
Nuvem sim nuvem não
Sol assim sol anão
Sim não sim não
Pudim pudim
Pózinhos de perlimpimpim no jardim
Está está está uma flor a acordar
Estão sete meninas a cantar no canto do jardim
Sete meninas a cantar ali!
Sol chuva
Nuvem sim nuvem não
Sol assim sol anão
Sim não sim não
A erva está a crescer
A laranjeira está a acordar
O rato está a rir
A formiga está a correr
O dedo está a mexer
O cabelo está a crescer
O ar está a mudar
A casa está a falar
É possível?
É possível uma casa estar a falar?
Plim plim plim
Estão sete campainhas a tocar no canto do jardim
Sete campainhas a tocar, ali!
Está está está está
Uma vaca de t-shirt
Está está está está
Uma abelha a tomar nestum com mel
Está está está está
Uma andorinha a dar um beijinho
Está está está está
Uma aranha de manga curta
Está está está está
Uma laranja a tomar sumo de laranja
Está está está está
Um pão a comer uma torrada
Está está está está
Uma casa com remelas nas janelas.

O final do espetáculo consiste num flash back evocativo de episódios da peça, evocativo também da passagem do tempo e do renascimento da natureza, que resulta numa espécie de lenga lenga de apaziguamento que nos conduz ao verdadeiro final de qualquer peça de teatro: o escuro.

A vaca esvaziou
A chuva parou
O inverno acabou
O sol brilhou
A primavera voltou
O vento sossegou
O ouriço acordou
O passarinho voou
O porco cambalhotou
O tempo passou
A flor desabrochou
A lagarta lagartou
O jardineiro jardinou
O Óscar brincou
A galinha chocou
A história acabou
A luz apagou…
Como isso não é possível, propunha a abordagem de um outro texto que também tem um final feliz e bem mais convencional.

POLEGARZINHO

É uma história que sempre esteve entre as minhas preferidas, desde pequeno. Conhecia-a através de uma versão portuguesa de António Manuel Couto Viana, intitulada “João Polegar”. Na altura em que comecei a ponderar fazer um espetáculo a partir deste conto, cheguei rápidamente à conclusão de que existiam inúmeras versões do mesmo. Todos os grandes autores clássicos de contos, Jacobs, Perrault, Grimm e Andersen, tinham escrito as suas versões. Além disso existiam ainda diversas versões aculturadas: Tom Thumb, na Inglaterra, Tom Poucet, em França, João Polegar, em Portugal, Pequeno Pêssego, no Japão, e muitas outras. Todas muito diferentes. Mas iguais, no essencial. E o essencial é que um menino muito pequenino é capaz de vencer as maiores dificuldades, com coragem e inteligência e é até capaz de amar, numa metáfora recorrente de grande parte dos contos, que é a metáfora do crescimento.

O que acho fantástico neste conto é a possibilidade de imediata identificação de uma criança com o herói. Desde logo por uma simples questão: as crianças vivem num mundo que, fisicamente lhes é desajustado, uma situação desconfortável semelhante à do Polegarzinho. Depois porque Polegarzinho, ao sair de casa, é atirado para o mundo, um mundo desconhecido e cheio de perigos que terá que enfrentar se quer sobreviver, numa situação de extrema fragilidade, porque fora de um quadro de proteção afetiva.

Como naturalmente compreenderam das minhas palavras de há pouco, tenho algumas dificuldades em encenar uma história sem primeiro me apropriar dela. E, neste caso, o processo de apropriação consistiu num profundo processo de reconstrução.

A dramaturgia consistiu em proceder à montagem de uma série de episódios retirados das diversas versões conhecidas, num processo de canibalização, um pouco à imagem dos ladrões de automóveis, que roubam peças de diversos veículos para construirem um carro novo. A história que daqui resulta eu diria que não é nova mas que, pelo menos é pessoal e adaptada a necessidades teatrais concretas.

Darei alguns exemplos: a história começa com um pormenor que achei muito curioso, da versão francesa, que pode transmitir às crianças uma ideia mítica do tempo passado: “Há muito, muito tempo, no tempo do reinado do Rei Artur…” Recentemente ouvi, numa peça de teatro um referente do tempo passado bem mais interessante do que este. Era uma história que começava assim: “Há muito tempo atrás, antes do 25 de Abril…”.

A história continua e a opção pelo tempo do Rei Artur, origina que o pai de Polegarzinho, Grande João (um pormenor delicioso, este do pai ser enorme) se encontre com o Mago Merlim. O nosso herói nasce de uma flor, como em Andersen, e a partir deste momento os episódios sucedem-se vertiginosamente: o encontro com os ladrões e com a vaca, provém do conto dos irmãos Grimm, a queda na massa do bolo (a fazer lembrar o João Ratão), as passagens em que Polegarzinho é engolido, primeiro por uma vaca, depois por um peixe, bem como a cena no castelo do Rei, são inspirados no nosso João Polegar, o episódio das Ratas é uma ideia de Andersen. Algumas cenas foram criadas de novo, de modo a dar uma sequência verosímil a esta montagem, nomeadamente o encontro com o gato que nos leva ao cume dramático, no qual o Polegarzinho enfrenta o Gigante, desfecho semelhante à História do Gato das Botas. No final, Polegarzinho é recompensado pela sua coragem, como não podia deixar de ser, regressa a casa dos pais como não podia deixar de ser, num contexto do tal final apaziguador. Para que tudo termine bem não podia deixar de se apaixonar, por uma menina que, como ele, tinha nascido de uma flor (Andersen). Enfim, todos temos aquilo que merecemos.

Eis o final da história:

“Passados alguns anos Polegarzinho conheceu uma menina que, como ele, tinha nascido de uma flor encantada. Chamava-se Polegarzinha. Casaram e viveram muito felizes para sempre”.

Casem ou não casem, espero que sejam muito felizes. Pelo menos as boas histórias para crianças fazem-nos acreditar que existe essa possibilidade.

João Paulo Seara Cardoso