Sobre a Encenação de Macbeth

“Comunicação apresentada na Conferência “Shakespeare entre nós”
Faculdade de Letras de Lisboa, 28/29 de novembro de 2005

Eram as bruxas, na mentalidade da sociedade isabelina, representativos humanos das forças negras e sobrenaturais que emanavam das entranhas da terra, encarnações da estirpe do mal.

Hoje, passaram cinco séculos e, como toda a gente sabe, já não há bruxas. Mas as emanações do mal subsistem, embora com diferente aparência, e os homens agem ainda como outrora agiu Macbeth.

O que me atrai em Macbeth, como em qualquer outra expressão da genialidade artística do Homem, é a universalidade, a intemporalidade. Porque embora baseado em factos reais da história de Inglaterra, a história de Macbeth e dos personagens que o rodeiam, através do filtro do génio de Shakespeare, adquirem a dimensão de metáfora de tipos humanos, intemporais e universais. E nos tempos que correm, é deveras inquietante constatarmos a atualidade da dimensão política e metafísica da tragédia.

No ano 2000, acabava de se travar a guerra dos Balcãs, a maior tragédia ocorrida na Europa depois da segunda guerra mundial. Fazer Macbeth foi para nós, nessa altura e nesse contexto uma forma de nos confrontarmos a nós próprios e ao público com uma reflexão sobre as novas formas de poder violento e as novas aparências das bruxas.

Macbeth é a última das quatro grandes tragédias de Shakespeare, depois de Hamlet, Otelo e Rei Lear. É também a obra em que o seu autor numa fase mais madura da vida, dilacera a própria alma e mais se envolve no confronto das forças antagónicas que regem a existência humana. É a mais obscura das suas tragédias, a tragédia da noite, do sono, da morte.

Do ponto de vista puramente técnico, conceptual, Macbeth é das mais perfeitas peças que jamais se escreveram. A quantidade e a qualidade dos dados que se jogam na teia dramatúrgica da peça é impressionante, mas todos eles se articulam com a precisão do mecanismo de um relógio. Por esse motivo, Macbeth é um magistral exercício de interpretação.

Repare-se neste exemplo, logo no início da peça, de desafio incrível à capacidade de interpretação, ao nível da evocação sensorial e emocional: os guerreiros Macbeth e Banquo regressam do campo de batalha; exigir-se-à, aos atores que os interpretam que, no seu olhar, nas suas ações e na sua voz, perpasse a memória da guerra recente, porventura a experiência humana mais brutal, que ouçam ainda os gritos dos guerreiros, o retinir das espadas nas armaduras, os gemidos dos moribundos, que sintam o medo da morte, e que cheirem o cheiro do sangue quente, mas que também sintam físicamente o tempo presente, a noite, o ruído dos cascos dos cavalos e o seu cheiro, os relâmpagos e trovões, a chuva, o vento na face… E daí em diante, até ao final da peça a complexidade dos estados de alma do personagem principal aumenta exponencialmente.

Na nossa encenação de Macbeth, o texto foi substancialmente reduzido, por questões quase básicas, que têm a ver com a própria sobrevivência da linguagem das marionetas num contexto difícil como é o de um clássico. Foi privilegiada uma dramaturgia de ação, entendida ação como progressão dramatúrgica, o que nos leva nesta peça a encontrar, por vezes, os mais intensos movimentos no interior dos próprios monólogos, autênticos turbilhões alucinantes de palavras, ideias, imagens, sentimentos, cores… É um processo dramatúrgico que conduz a uma espécie de compacto de Macbeth. Daria dois exemplos significativos do processo operado na redução do texto. No momento que se segue à morte do rei Duncan foram eliminados todos os passos de descoberta e comentário do assassínio, por parte dos vários personagens. E a voz do remorso que Macbeth diz ouvir e o enlouquece é amplificada pela voz de um ator/arauto do crime, como se essa alucinação interna de Macbeth atordoasse os próprios ouvidos do público.

Não durmas mais que Macbeth matou o sono, o Sono inocente que desfia a emaranhada teia das aflições. Não durmas mais. Glamis matou o Sono e por isso Cawdor não mais dormirá, Macbeth não mais dormirá.

A que se segue a fala de Lady Macbeth criticando a fraqueza demonstrada pelo marido:

Quem era que assim gritava? Por que afrouxais valoroso cavaleiro a vossa nobre força com pensamentos tão doentios? Ide buscar água e lavai das vossa mãos essa suja testemunha.

Finalmente, a síntese do crime extraída de falas de Macduff e Lennox, de uma força impressionante, também em forma de comunicação ao público:

Entrai no quarto do rei e destruí a vossa vista com uma nova Górgona. A destruição fez a sua obra prima. O mais sacrílego dos assassínios forçou as portas do Templo do Senhor e dele roubou a vida. Assassínio, traição! Acordai, repeli esse brando sono que é a cópia da Morte e olhai para a própria Morte. Erguei-vos dos vossos sepulcros e vinde como espectros presenciar este horror. Toquem o sino! (ouve-se água a correr)

Relativamente à longa cena passada na Inglaterra no refúgio de Malcolm, a comunicação de Ross de que a família de Macduff tinha sido assassinada foi valorizada e tornada autónoma. Do resto da cena na qual Macduff e Malcom se lamentam da situação que se vive na Escócia, onde Macbeth usurpou o trono, e decidem a estratégia a seguir, foram extraídas as falas mais significativas e passadas a narração feita pelos atores que, assim, neste ponto da peça, tomam por momentos o partido das “forças do bem”, de uma forma muito próxima do coro trágico grego que comenta e critica a ação:

Primeiro, os lamentos:

Ah, pobre terra que quase teme reconhecer-se, já não se lhe pode chamar nossa mãe mas sim nosso túmulo, onde ninguém sorri a não ser os que nada sabem, onde suspiros, lamentos e gritos cortam o ar mas ninguém dá por eles…

Pior cada manhã que passa novas viúvas choram, novos órfãos se lamentam, novas penas abalam a face dos céus que, condoendo-se da Escócia, ecoam num grito cada sílaba da dor.

Quase ninguém pergunta porque dobram os sinos e as vidas dos homens de bem são mais curtas que as flores dos seus gorros; morrem antes que elas sequem.

Depois a decisão da ação, momento fulcral que irá desencadear um novo ciclo dramatúrgico;

Empunhemos uma espada mortal e, como homens de bem, defendamos os nossos espezinhados direitos de nascença.

Uma das primeiras necessidades que senti, relativamente ao texto, foi a necessidade de criar descontinuidades, de o estruturar formalmente de modo a proporcionar um diálogo preciso com os movimentos artificiais, diria quase codificados, das marionetas. Criamos assim um banco de 56 sons, mais ou menos figurativos ou mais ou menos abstratos, acionados por um operador através de um teclado, que funcionam como elementos estruturadores do texto, pontuando-o ou criando tessituras, o que resulta numa espécie de partitura para palavras e sons. Existem durante a representação cerca de 360 intervenções sonoras.

Também foram usados microfones emissores individuais, para criar uma estética de voz menos natural e como artifício técnico que permitisse, por um lado criar o grande espaço físico tão presente nesta peça, por outro lado, possibilitar o contrário, o espaço de intimidade dos personagens, importantíssimo para os monólogos de Macbeth, que permitisse, nesses casos, aos atores, falarem com um tom de voz muito baixo, que não seria de outra forma audível numa sala de teatro.

Muito interessante, na criação deste Macbeth, foi a pesquisa que fizemos relativamente ao tipo de marioneta a usar. Não há dúvida que no teatro de marionetas a técnica é determinante para a estética; mas é verdade também que usando como ponto de partida uma tão poderosa construção textual a marioneta teria que se submeter à sua humilde condição de matéria condutora, de veículo de transmissão de um texto e das ideias nele contidas.

Curiosamente, vínhamos na companhia desenvolvendo uma complexa técnica de marionetas sobre a mesa, manipuladas através de cinco varas, por três atores, que dava uma resposta excelente aos nossos ideais de uma certa poética de movimento não realista. E com essas marionetas iniciamos os ensaios. O resultado do texto de Shakespeare dito por aquelas criaturas de gestos delicados e ágeis e andar gracioso foi absolutamente catastrófico. As marionetas eram demasiado frágeis, não suportavam o peso das palavras, a complexidade das paixões. Em teoria, a coisa explicava-se muito bem: a técnica usada na construção de uma marioneta e o correspondente desempenho físico é um elemento dramatúrgico importantíssimo. Mas na prática o problema não era simples de resolver. Nós estávamos a fazer qualquer coisa como tentar tocar os célebres concertos para violino, de Chopin, com uma guitarra elétrica. Tarefa impossível. De experiência em experiência as marionetas foram ganhando dimensão, estatura, os membros perderam a proporção relativamente ao corpo, as articulações tornaram-se mais rígidas, o peso aumentou brutalmente. O resultado final foram umas criaturas pouco elegantes, com um metro de altura e quatro quilos de peso.

Quanto ao sistema de manipulação a evolução foi também curiosa. As varetas de aço com cerca de um metro não eram bons condutores das palavras e foram sendo progressivamente reduzidas, até desaparecerem por completo. O corpo dos atores passou a estar diretamente em contacto com a marioneta. As mãos dos atores agarravam as marionetas pela nuca com firmeza, como se agarra um animal selvagem que nos pode escapar, ou mesmo atacar. Esta questão da proximidade física, por vezes um pouco brutal, foi determinante para a interpretação. Porque, se por um lado nos dava um envolvimento físico fortíssimo com o personagem por outro, e nesse aspeto o teatro de marionetas permite esse milagre, não deixávamos de ser, exatamente como o público, espectadores da representação que se desenrolava diante dos nossos olhos, permitindo o absoluto controlo de uma questão fulcral: a do envolvimento emocional com o personagem.

Estas são algumas reflexões e algumas memórias soltas sobre a encenação de Macbeth, apresentada pelo Teatro de Marionetas do Porto há já cinco anos. Dizem respeito a algo de muito particular e muito marcante da minha prática teatral, tanto mais que interpretei o personagem principal e não se sai ileso dessa experiência. Enfim, só faz sentido falar de tudo isto desta forma porque estamos a falar de Shakespeare, porque se trata de Macbeth, por que se trata enfim de teatro no que ele tem de mais brutal e fascinante de explicitação da condição humana.

João Paulo Seara Cardoso