Since a few years ago we have been thinking obsessively about extracting “theatrical matter” out of our urban living. About reflecting on the way our emotions, our “senses” survive in the post-modern urban world of massification and isolation. About the way our thoughts react when the “pixel syndrome” settles in.
We watch the world, we watch the town, the people and things but we can also imagine that we are watched by whatever surrounds us. Our work begins precisely at that change of point of view.
And when we slowly close our eyes, a system of filters settles in, of inverted images, a theatre of the invisible, of unfinished senses, of thoughts waiting for a special look to make them gain unexpected and personal meanings.
Artificial bodies are prone to creating liveable voids. The parallel existence or the existence at different times of actors and marionettes – those sublime machines of desire, metaphors of restlessness moving between earth and air – makes us understand the meaning of the ephemeral.
Through this form of creation we start with simple experiments, with words leaving impressions on us, from mere poetical hypothesis evolving with aesthetical and coherence criteria, until they seem to form images side by side with our lives.
It is this resemblance of theatre and life that we are obsessively looking for.
João Paulo Seara Cardoso
João Paulo Seara Cardoso
marionettes
Júlio Vanzeler
costumes
Júlio Vanzeler, Patrícia Valente
text
Steve McAllister
sound design
Sérgio Rolo
video
António Real
marionette painting
Emília Sousa
movement
Isabel Barros
lighting design
Jorge Costa
cast
Edgard Fernandes, Igor Gandra, Mariana Portugal, Sérgio Rolo, Tânia Gonçalves
staging assistant
Marta Nunes
production assistant
Paula Anabela Silva
technical coordination
Rui Pedro Rodrigues
construction coordination
Vitor Silva
construction technicians
Abílio Silva, Alexandra Pires, Júlio Alves, Rui Pedro Rodrigues
costume making
Branca Elísio
scenography construction
Américo Castanheira, Tudo-Faço
video technician
Hugo Valter Moutinho
assembly
ÁudioLuís Aly
translation
Isabel Leite Silva
stage photography
João Tuna
executive production
Sofia Carvalho
sound operation
Rui Pedro Rodrigues
lighting operation
Marta Nunes
video operation
Hugo Valter Moutinho
A angústia citadina no mundo pós-moderno
Quando anoitece, como vivem as pessoas na cidade? Que sentimentos atravessarão os espíritos que deambulam por este mundo pós-moderno em permanente mudança? Estas são algumas questões que “assombram” “Paisagem Azul com Automóveis”, uma produção do Teatro de Marionetas do Porto, Teatro Nacional de S. João (TNSJ) e Porto 2001.
A busca empreendida pelo Teatro de Marionetas do Porto (TMP) nos últimos anos tem apontado, inequivocamente, numa direção: a aproximação do teatro à vida contemporânea. É aí que procuram o que João Paulo Seara Cardoso, diretor artístico do TMP, chama de “matéria teatrizável”. E o que é “importante no mundo de hoje”, considera Seara Cardoso, “é uma densidade da vida que é trazida pelas novas cidades, pela velocidade das coisas, por novos conceitos”, o que, inevitavelmente, gera na cabeça das pessoas novos sentidos e novas formas de relacionamento. É sobre esse “mundo pós-moderno” em que (sobre)vivemos – um mundo caracterizado por uma certa massificação, por uma certa incomunicabilidade e pela perda de conceitos – que o TMP procura refletir. “As pessoas hoje são mais felizes?” ou “Como é que as pessoas se relacionam?” são algumas das questões que a companhia tenta pôr em jogo nas suas produções e, particularmente, em “Paisagem Azul com Automóveis”, onde o experimentalismo, que sempre foi a sua imagem de marca, é levado por novos caminhos.
O modo como as vivências no mundo pós-moderno são abordadas nesta produção não é óbvio, já que tudo se passa a um nível muito simbólico: é um teatro de sinais que o público terá que descodificar. “Nada é dado ao público de mão beijada”, afirma o encenador, há um apelo constante “à sua sensibilidade, à sua inteligência e às suas experiências”. No fim, o objetivo é claro: “quero que as pessoas que assistem a este espetáculo, por mais denso que seja a nível de signos teatrais, sintam ressonâncias daquilo que estão a ver nas suas vidas”.
O que irão ver é, no fundo, uma “história de amor”, admite, um pouco hesitante, Seara Cardoso. Uma história de “encontros e desencontros” de um personagem, que pode ser definido, “subtilmente”, como o principal, como figuras femininas ou fantasmas de figuras femininas. É na cabeça desse personagem que se irá desenrolar “uma certa realidade”, que o próprio encenador tem dificuldade em discernir. “Neste momento tenho alguma dificuldade em falar da peça”, reconhece. “Este é um caminho estranho, penso que andamos muito no interior das pessoas e muito pouco no exterior”, diz. Tudo se desenrola ao nível onírico, das inquietações, do que se passa dentro da cabeça dos personagens, numa cidade, “talvez à noite”: “vejo esta história a passar-se à noite”, reflete o encenador.
O choque entre Marionetas e Actores
Depois de “Macbeth”, “em que o texto foi o elemento primordial”, agora a grande curiosidade de Seara Cardoso, é qual será a sensação do público perante um “espetáculo superexperimentalista”, em que os códigos teatrais se confundem e têm todos a mesma legibilidade e importância. Ou seja, neste espetáculo o texto existe, mas “está ao mesmo nível das luzes, da banda sonora, do movimento, das marionetas”. Há uma rede de signos teatrais que estão sempre a cruzar-se, o texto não é tudo. Até porque, nesta era da comunicação e da “ditadura” da imagem, se calhar, arrisca o encenador, “o mais importante dos nossos espetáculos será a imagem, o que se vê”. Uma coisa salta à vista nesta nova produção do TMP é a ausência total das mesas de manipulação criando um inusitado espaço de convívio direto entre marionetas e atores. A coexistência no palco de atores e marionetas não é novidade no TMP – desde há muitos anos que é prática formal da companhia – , mas a “libertação”, porque é de libertação que se fala, das “grilhetas” da tradição foi gradual. Primeiro foi a suspensão da tradicional barraca, que escondia os atores, rasgando-se o espaço, que passa a ser um palco enorme onde atores e marionetas passam a conviver, trazendo uma “teatrilidade e possibilidades infindáveis” – é chamada manipulação à vista. Dentro desta técnica, o TMP especializou-se no que se chama teatro sobre a mesa, o que na prática significa que nos espetáculos o cenário passou a ser quase sempre o chão – o recente “Macbeth” é paradigmático dessa opção.
Um novo caminho
Para “Paisagem Azul…” empreenderam um novo caminho: “decidimos que as marionetas, desta vez, não iam ter nada onde pousar”, explicou Seara Cardoso. “Ou voavam, que é uma das características delas, não têm peso, ou quando precisarem de pousar pousam em cima dos corpos das pessoas que as animam”. Assim, no fundo, o princípio técnico desta criação foi uma pesquisa das relações do corpo do ator com o corpo da marioneta, sem mais nada, no vazio absoluto.
Integrado na programação da Capital Europeia da Cultura – coprodução do TMP, do Porto 2001 e do Teatro Nacional de S. João – o espetáculo já estava programado antes dessa inclusão, daí que não tenham existido quaisquer condicionalismo. Aliás, diz Seara Cardoso, o “que determinou a forma final do espetáculo foi a mudança da apresentação para o TNSJ, porque é um palco maior do que aquele que tinhamos pensado para ele”.
Andreia Marques Pereira
in “O Primeiro de Janeiro”, 3 de setembro 2001
O Teatro de Marionetas do Porto no Teatro de S. João, no Porto
Depois de uma destemida e rigorosa incursão pela dramaturgia de Shakespeare, o Teatro de Marionetas do Porto participa agora do roteiro multidisciplinar do PoNTI estreando, a 13 de setembro, no teatro Nacional de S. João – Paisagem Azul com Automóveis.
Um regresso à matriz mais experimental do trabalho que o encenador João Paulo Seara Cardoso – mais do que um agente teatral, um criador e um líder artístico – há muito desenvolve, ao investir na deputação dos movimentos em cena, na sofisticação da relação com áreas criativas como a música e artes plásticas, no recurso às novas tecnologias e num work in progress partilhado por todo o coletivo de criadores e intérpretes.
Pela primeira vez na história da companhia, desaparecem por completo as mesas de manipulação e os fatos pretos que mitigam a presença dos manipuladores, abrindo-se neste espetáculo um imprevisto espaço de convívio e choque entre marionetas e atores.
E reincidindo na colaboração com Júlio Vanzeler – quem viu as feições e os figurinos das marionetas de “Macbeth”, não os esquecerá tão facilmente -, Seara Cardoso ativará o trânsito desses duplos de nós próprios, que ora divertem ora assombram, numa poética paisagem urbana que o automóvel atravessa como personagem central.
Posto isto, o convite fica feito: vá ao Teatro de S. João e assista ao Teatro de Marionetas do Porto designado “Paisagem Azul com Automóveis”, com estreia marcada dia 13 de setembro e com a promessa de ficar em cena até dia 30 do mesmo mês.
in “olaporto.com”, 7 de setembro de 2001
Caos mecanizado da vida urbana
“Paisagem Azul com Automóveis”, do Teatro de Marionetas do Porto, estreia hoje, no Teatro Nacional S. João
Busca incessante de contemporaneidade nas linguagens teatrais tem sido a força anímica do Teatro de Marionetas do Porto (TMP). Gradual, mas generoso, o empenho do encenador João Paulo Seara Cardoso tem-se traduzido por ameaças de inovação, no que respeita à conceção e manipulação de marionetas, outrotanto para a transversalidade que já denunciara e que agora concretiza, de um modo mais aparatoso, no espetáculo “Paisagem Azul com Automóveis”. Trata-se de uma coprodução do TMP, Teatro Nacional de S. João (TNSJ) e da Porto 2001, inserida na programação do PoNTI, que hoje estreia, às 21.30 horas, no TNSJ no Porto.
Corpos artificiais
“Paisagem Azul com Automóveis”, cujo elenco é constituído por Edgard Fernandes, Igor Gandra, Mariana Portugal, Sérgio Rolo e Tânia Gonçalves, aglutina novas linguagens cénicas, cruzando a dança e o audiovisual, numa continuada rutura com o tradicional espetáculo de marionetas.
As mesas deixam de ser o suporte da manipulação; as marionetas voam, isentas de peso, em ato de liberdade; a relação entre o corpo do ator e o da marioneta despoleta uma narrativa diferente da habitual. Ambos são cúmplices e aparecem transformados em “corpos artificiais propícios à criação de vazios habitáveis”, espaços onde a experiência alheia ganha o estatuto de habitante.
Alicerçado numa gestação sistemática, albergue de múltiplas personagens, o criador deseja libertar-se de si próprio, perder-se na imensidão e “cheirar-se na pele dos outros”.
“Síndroma de pixel”
A perda de identidade, aquilo a que Seara Cardoso chama “a síndroma de pixel”, é revista e simbolicamente transportada para a paisagem urbana atravessada por automóveis.
A velocidade, a solidão, a massificação, a rua, o apartamento e a incomunicabilidade fazem-se apanágio do tecido urbano e provocam um desassossego inconformista. È necessário encontrar “imagens ou sensações, ou simples coisas que um dia passaram por dentro ou ao lado das nossas vidas”, e repensá-las, porque “o dedo no gatilho é sempre o nosso e com ele matamo-nos vezes sem conta”.
A metáfora das exigências e dos paradigmas sociais são as manilhas que prendem os protagonistas às marionetas: carregam-nas como Atlas carrega o Mundo aos ombros; surgem atrelados a elas, como inconscientes seguidistas; tornam-se artificiais, como elas; são crucificados por elas.
Uma pergunta faz-se mote do espetáculo: somos verdadeiramente felizes? Os sentimentos são engolidos pela indiferença e pelo caos mecanizado da vida urbana. Não mais consideramos outros pontos de vista que não o próprio. “Paisagem Azul com Automóveis” é “um soco no estômago”, um apelo à reflexão, quando tudo parece corrompido. Súbito, uma história de amor acontece.
Filomena Serrano
in “Jornal de Notícias”, 13 de setembro 2001
“O dedo no gatilho é sempre nosso”
“Paisagem Azul com Automóveis” é uma proposta para os sentidos. Estreia hoje no S. João, no âmbito do PoNTI, a nova peça do Teatro de Marionetas do Porto encenada por João Paulo Seara Cardoso.
É um ambiente futurista, com referências cinematográficas, entre o “Blade Runner” e o “Matrix”, que se desenrola “Paisagem Azul com Automóveis”, a nova encenação de João Paulo Seara Cardoso, do Teatro de Marionetas do Porto (TMP). Com este trabalho marca-se a estreia do TMP no festival PoNTI, do Teatro Nacional de S. João.
Para João Paulo Seara Cardoso um espetáculo de marionetas deve ser “aglutinador de linguagens cénicas”. Nesta nova peça, essa característica é absolutamente visível, sendo praticamente inexistente a fronteira que separa o teatro da dança ou até da música ou das artes plásticas.
Utilizados como signos, todos os meios contribuem para a criação de um ambiente futurista que, para o encenador, não é mais do que o mundo atual. “A peça quer despertar uma reflexão sobre a nossa vivência contemporânea, um certo sentido de urbanidade”, diz. O encenador considera que o cinema faz esse tipo de reflexão melhor do “que não soube acompanhar essa vertente”.
Talvez por isso as referências ao cinema sejam óbvias, originando que, de certa forma, a peça acabe por cair em lugares comuns.
Logo no início entra-se num ambiente próximo do filme “Blade Runner”, que depois se transforma no mais recente “Matrix”. A realidade virtual, os jogos de computador ou a identidade perdida são temas explorados ao máximo como no filme dos irmão Andy e Larry Wachowski.
Chega até a haver uma cena de luta onde o personagem luta contra um inimigo invisível, como num jogo de realidade virtual. Mas esta é só uma das muitas coincidências com “Matrix”. “Ao longo do espetáculo, o público recebe sinais de velocidade, solidão e massificação, características do mundo pós-moderno de incomunicabilidade”, diz o encenador.
No desespero de quem não quer aceitar o mundo tal como ele é dado, surge uma frase “o dedo no gatilho é sempre o nosso”. A esperança aqui parece uma utopia. Aceite-se ou não os parâmetros do mundo não é possível a liberdade.
No fim, contudo, esse pessimismo á contrariado. A personagem pergunta porque não poderá voar e acaba a atirar-se de uma janela. A última cena, esteticamente belíssima, é um símbolo à liberdade, admite João Paulo Seara Cardoso, acrescentando que “quem já viu a peça diz que esta “tem um final feliz”.
No meio do mundo que é descrito aparece outro sinal de esperança – o amor. Diz o encenador que optou por inserir na peça uma pequena história de amor. Pegando no mote de Cat Stevens – “quero-vos dizer que tudo o que aprendi é que o amor é tudo” – esse sentimento é outra via, apesar de “as pessoas terem hoje em dia uma vivência de sentimentos diferentes das gerações passadas”. A pergunta “como podem neste mundo sobreviver os sentimentos?” fica então em aberto.
Artes visuais em palco
O espetáculo aposta mais nas artes visuais e sonoras do que no texto, de Steve McAllister.Grande parte dele nem é traduzido do inglês. João Paulo admite que foi uma opção não traduzir o texto na sua totalidade, pois a maior parte do que é dito só interessa como sonoridade. “Quando vamos na rua ouvimos as pessoas a falar e isso não passa de um som, porque não percebemos o que estão a dizer”, considera.
A música aposta na eletrónica, o que ajuda a criar um ambiente robótico, acompanhado pelos movimentos das marionetas, dos atores e dos atores-marioneta.
Não acrescentando conceptualmente nada de novo, “Paisagem Azul com Automóveis” vale sobretudo pelo perfeiccionismo técnico e pela beleza plástica. As marionetas foram uma obra de Júlio Vanzeler, que concebeu também os inspirados figurinos em conjunto com Patrícia Valente. Os vídeos projetados são de António Real e o magnífico desenho de luz de Jorge costa.
O elenco é composto por Edgard Fernandes, Igor Gandra, Mariana Portugal, Sérgio Rolo e Tânia Gonçalves.
Luisa Marinho
in “O Comércio do Porto”, 13 de setembro 2001
O céu como escape para o fumo dos sentimentos
“Paisagem Azul com Automóveis”, do Teatro de Marionetas do Porto, estreou ontem no S.João. Um retrato da urbanidade.
A palavra contemporaneidade tem atravessado cada vez com maior insistência todos os setores da arte, preocupados, por vezes mesmo obcecados, em produzir objetos que transportem sinais dos tempos que correm e nos inspiram a uma reflexão sobre o modo como vivemos. Se há domínios criativos em que esse propósito tem sido atingido com alguma frequência, outros evidenciam uma inquietante dificuldade em concretizar tais intentos. É, ou pelo menos tem sido, o caso do teatro, ora cativo do seu estatuto de mais antiga arte dramática, regendo-se por atavismos e preceitos desajustados da realidade atual, ora falho de criatividade e ousadia, limitando-se a apanhar e a reenquadrar num discurso entediante e estereotipado os restos deixados por outros setores artísticos, como é o caso do cinema.
Em Portugal, entre os poucos desvios registados a esta regra têm figurado as propostas do Teatro de Marionetas do Porto, sobretudo a partir de Exit (1998), que assinalou, como o próprio título sugere, o início de uma procura de novos caminhos, definidos no universo de uma “linguagem aglutinadora” que não hierarquiza as vertentes cénicas de que se compõe. Paisagem Azul com Automóveis espetáculo estreado ontem por aquele coletivo no Teatro Nacional S. João, é o paradigma disso mesmo. Resultado de um processo experimentalista e fragmentário, enquadra cada pequena “conquista” num todo invulgarmente coerente, tanto mais assinalável quando rejeita o texto como o fio condutor, misturando-o com uma série de outros signos que tocam os sentidos do espectador e estimulam a tal reflexão sobre o mundo de hoje.
De uma ponta a outra, Paisagem Azul com Automóveis transmite-nos uma ideia tão perturbante quanto lúcida de urbanidade. Uma urbanidade veloz, caótica e massificada, feita de isolamento, de solidão, de incomunicabilidade, de violência, de desespero mudo, no interior da qual não se sabe se e como os sentimentos podem sobreviver. Daí que o espetáculo seja, fundamentalmente, para sentir, como forma privilegiada de compreender. Todos os elementos – do ambiente metálico e frio do cenário ao movimento maquinal dos atores, que se confundem com as marionetas, numa metáfora inteligente de humanidade, passando pelo frenesim eletrónico da música, sem esquecer a ambivalência plástica e semântica do texto – concorrem para um soco no estômago que, subitamente, por instantes, como frente a um oásis em pleno deserto, se suspende da beleza de uma história de amor.
Às vezes basta um gesto artístico para nos lembrar que, apesar do barulho dos automóveis, podemos sempre perder o olhar no céu azul. Foi o que fez João Paulo Seara Cardoso, encenador do espetáculo, e toda a sua equipa.
Marcos Cruz
in “Diário de Notícias”, 14 de setembro 2001
Apoteose do mundo contemporâneo
Falado (e cantado) em inglês, como nos espetáculos de “spoken words”; ecos de Kafka, Borges ou Baudelaire; canções que remetem para Laurie Andersen; a sensação de plenitude de um filme. “Paisagem Azul com Automóveis”, em cena no S. João, é uma reflexão sobre a cidade e o mundo contemporâneo, eivada de poesia e de lugares vazios.
Primeiro, um fio de poeira, e, ao longe, um labirinto de fios de néon desenhado, pela passagem veloz dos automóveis. As luzes apagam-se e uma torrente de pó cai sobre a cidade, ofuscando o azul do céu, onde dança num voo de felicidade uma pequena marioneta. Que abandona a imagem viscosa de uma alegada asfixia urbana, e se liberta, voando sem sentido.
É com esta bela imagem que termina o espetáculo “Paisagem Azul com Automóveis”, pelo Teatro de Marionetas do Porto, cuja estreia aconteceu ontem, no Teatro Nacional S. João, no contexto da programação geral do PoNTI.
Depois de “Macbeth”, a última produção da companhia, estreada em fevereiro último, “Paisagem Azul com Automóveis” assume-se como uma autêntica viragem na linguagem estética que tem vindo a ser desenvolvida pelo grupo. João Paulo Seara Cardoso, encenador, decidiu “radicalizar” o percurso do grupo – algo que já se tinha sentido nas peças “Os Três Porquinhos” e “EXIT” -, inventando o papel das marionetas e dos atores. Desaparecem as mesas de manipulação – os corpos dos atores transformam-se em palco-, as marionetas libertam-se e rodopiam por todos os espaços de cena, num verdadeiro confronto com os atores. Dois meses em gestação foi o tempo necessário para a conceção de uma ideia-base, com a participação de todos os intervenientes na peça. Dois meses em que foram congeminadas e trabalhadas diferentes olhares sobre a(s) cidade(s), num exercício em que impera a imprevisibilidade.
Com um dispositivo cénico desenhado com formas geométricas e um belíssimo desenho de luz, da autoria de Jorge Costa, “Paisagem…” é totalmente falado (e cantado) em inglês, convertendo-se o texto num signo plástico baseado nos espetáculos de “spoken words”. Além de letras de músicas, extratos de filmes e discursos políticos, os artistas de “spoken words” representam uma “grande fonte de inspiração”, explica Seara Cardoso. Entre eles, Henry Rollins e a reconhecida “performer” gótica Lydia Lunch, que este ano poderá fazer parte (ainda sem confirmação) do cartaz do festival de “spoken words” Faladura, a decorrer nos primeiros dias de novembro, no Porto.
Nesta cidade-palco, onde a ação se desenrola a um ritmo estonteante, existe, de facto, uma reflexão sobre as sociedades pós-modernas. Ou melhor, sendo a cidade “cada vez mais um estado de espírito”, a questão que se impõe é saber “como se vive do ponto de vista dos sentimentos numa sociedade pós-moderna”, diz o encenador. O encadeamento veloz do quotidiano, materializado numa síntese de impressões que Seara Cardoso recolheu em várias cidades do mundo, as vivências cosmopolitas, muitas delas eivadas de solidão, foram algumas das matrizes que construíram o espetáculo, subtil na sua interpretação de uma poética urbana.
No meio do caos, no ceme de uma imagística vida de uma pessoa na grande metrópole, “Paisagem…” movimenta-se entre ecos, apenas isso, de obras de Kafka, Thomas Bernhard, Jorge Luís Borges ou Baudelaire. E parece ser este último autor que mais se insinua no espetáculo, pela não descrição exata da cidade e dos seus habitantes. Como na obra “ O Spleen de Paris”, é a multidão anónima que se revela no palco, habitado por atores marionetas, e a apoteose da grande cidade, que, contudo, é atravessada por uma história de amor. Pressente-se, a cada momento, uma dramturgia topográfica de diversas metrópoles, como se estas se transformassem numa linguagem própria, uma linguagem que condiciona todos os movimentos e gestos das figuras em cena.
Aprendam que o amor é tudo
quotidiano flui de uma forma quase banal – intervalo apenas por momentos de respiração-expansão das personagens e das marionetas que se multiplicam -, estando as figuras sujeitas a gestos automáticos, comandados por vozes que remetem para jogos de computador e para dessincronização dos mesmos. Apenas algumas frases do texto concebido por Seteve Mcallister a partir de colagens surgem no ecrã de tradução, e aquelas que perduram particularizam, incontornavelmente, o espetáculo: “vou-te dizer tudo o que aprendi/O amor é tudo”, retirado de uma canção de Cat Stevens; e “Estou sentado ao meu lado/na madrugada azulada/olho pela janela/Para a rua quente e movimentada/Apercebo-me que tenho frio e estou só/Usado como uma garrafa velha/As pessoas vivem e morrem/Nestes apartamentos compartimentados”, declara a figura solitária que, no final, observa a paisagem em tons de azul. É esta personagem, que parece viver numa constante solidão, que procura o mundo circunstancial – os encontros, o amor, a sobrevivência de sentimentos no vazio do mundo exterior. Como peixe que, entre muitos outros, enclausurados num pequeno aquário, sobressai e tenta não se perder numa tela de imagens enevoadas.
Num poema de Al Berto – “Acordar Tarde”, publicado no livro “Horto de Incêndio” -, pressente-se bem esta solidão: “irás sozinho vida dentro/braços estendidos como se entrasse na água/o corpo num arco de pedra tenso simulando/a casa/onde me abrigo do mortal brilho do meio dia”. É sobre este corpo, primeiro maternal, depois envergando uma pele mais sensual, que uma marioneta desenha uma dança solitária – um dos momentos mais ternurentos do espetáculo.
“Os corpos artificiais são propícios à criação de vazios habitáveis. A existência, a um mesmo tempo ou em tempos relativizados, de atores e marionetas, essas sublimes máquinas do desejo, metáforas do desassossego movendo-se entre a terra e o ar, fazem-nos afinal compreender o sentido do efémero”, escreve Seara Cardoso no programa de “Paisagem…”. É uma impressão de reconciliação e reconforto aquele que o encenador pretende verter para o público, fazendo uma analogia com a sensação de plenitude que se pode obter com o visionamento de um filme. Por isso, acrescenta, nota-se neste espetáculo uma busca quase obsessiva de “ressonâncias” da arte dramática com a realidade. Uma procura inevitável que escava o interior,mais ou menos oculto, das personagens, os movimentos das marionetas, a interpretação de canções que parecem remeter para alguns temas do álbum “Big Science”, de Laurie Anderson, ou a leitura de um certo cosmopolitismo que sustenta a solidão. A tal solidão sobre a qual também escreve Heiner Müller – “a solidão dos aeroportos”, esses lugares neutros, de passagem efémera.
É o mundo contemporâneo, então, que se afigura em “Paisagem…”, com todas as suas idiossincracias, explorando as ideias que desencadearam os recentes movimentos pró e contra globalização, aqui personificados num trabalho que mostra os dois lados da moeda: a poesia e o vazio que habitam as sociedades pós-modernas, independentemente das díspares definições que lhes atribuem os sociólogos. A poeira, essa, emerge sempre. Assim como o desejo de voar.
José Oliveira
in “Público”, 14 de setembro 2001
“Paisagem azul com automóveis”, que confirmam o lugar do Teatro de Marionetas do Porto como uma das grandes companhias mundiais de marionetas
O azul surge como descanso desejado, horizonte sempre longínquo, impossibilidade fatídica. A linguagem nesta “paisagem” é a da urbe, o inglês, mesmo descontextualizado de qualquer tribo especicífica, liga os sonhos e as contradições das personagens.
As personagens são núcleos de sentimentos reprimidos, confundem-se com as marionetas, confundem-se com cada um de nós.
O som. O som é avassalador, o desenho do som, da responsabilidade de Sérgio Rolo, merecia uma edição como “soundtrack” da peça. Se quiséssemos reduzir esta produção até a poderíamos chamar de musical. Mas a música (adequadíssima e “cantada” ao vivo) é apenas um dos elementos de uma magnífica e muito profissional orquestração de sons, movimentos (quase coreografias de companhia de bailado), expressões e cores, e, claro, também a manipulação mais próxima do teatro de marionetas clássico.
Um momento de grande intensidade é aquele em que uma marioneta parece querer despertar um corpo humano, aparentemente inerte, pesadamente imóvel. O pequeno “pinóquio emancipado” faz um pouco de tudo mas acaba por ser ele a arrastar o corpo do… amo? manipulador? “puppet master”? Talvez apenas um de nós! Uma das características mais arrepiantes deste “Paisagem Azul…” é a maneira como em palco os elementos ator/marioneta estão tão próximos. Fundem-se e separam-se, dançam e agridem-se, mas a ideia concreta de um Manipulador e um manipulado está a milhas de distância. Manipulados somos todos. E manipuladores também, porque não. O cerne das questões (apenas surgidas) está noutras lonjuras.
O motor das movimentações em palco é o maquinismo e a industrialização que articulam a sociedade pós-moderna.
A alienação violenta e a incapacidade de quebrar os “strings attached” que nem sabemos se realmente existem. Onde está, se existe, o Big Brother? Onde o botão off, para um descanso do strees? Onde o azul dos filmes que enchem os bolsos do sonho? Onde estamos?
Estamos e pensamos. Com espetáculos destes, temos que pensar, depois de sentir. Uma verdadeira tempestade emotiva, sem nada de trágico a acontecer em palco. Nunca o caminho da facilidade se insinua durante o decorrer de “Paisagem Azul…”
A identificação, a transferência, a dupla personalidade a aflorar, o trauma, o recalcamento, os contornos e desvios da mente e do coração fervem e transbordam. Não me parece possível assistir a esta peça como se se tratasse apenas de um espetáculo visual grandioso. Dizia Seara Cardoso numa entrevista que a noção de marioneta tinha a ver com o uso de um elemento intermediário, não necessariamente um boneco antropormórfico. Parece que afinal o humano é que é “marionetormófico” tal como a tendência para a alienada condução da vida, para a ausência de consciência nos atos e atitudes.
Perante o estado das coisas apetece mesmo pegar no automóvel à procura do Azul (como na música dos Trovante). Afinal ninguém é imune e o cinzento corrói.
Nuno Ribeiro
in “vida.pt”, 19 de setembro 2001
Ruhmachrichten (tradução para português)
Com este quadro começa “Paisagem Azul Com Automóveis” do Teatro de Marionetas do Porto. O grupo era desconhecido na Alemanha, mas isso mudou depois do Fidena.
Viver ao Ritmo Techno
O Teatro de Marionetas do Porto apresentou duas produções no Fidena.
Talvez a peça não tenha agradado a todos, mas o TMP foi sem dúvida uma revelação no Fidena. O ritmo da música techno mistura-se com a dança em “Paisagem Azul Com Automóveis” num teatro moderno que levanta questões atuais e atrai os jovens.
Há barulho no hall centenário. Impelidas pelo ritmo da música, as pessoas correm pelo palco, sem se notarem umas às outras, andando sem parar. É a nossa sociedade urbana que os portugueses explicam num mundo parecido com um jogo de computador, no qual o que importa já não é a pessoa mas sim o mecanismo.
Os cinco atores entram outra vez – mais dançarinos do que atores – figuras que já não têm identidade própria, que são todas iguais. E então desafiam as pessoas: “My brain need some stimulation” canta um, e para finalizar evoca-se boa música rock antiga.
São cenas individuais e talvez este seja o ponto fraco da encenação, que acaba por não prender. São sequências individuais como a do dançarino que se deixa comandar pelo computador: “Fight, fight, danger, down, reload”, e depois não consegue atingir o nível proposto. O melhor são os momentos calmos e poéticos, como quando a marioneta dança para a mulher adormecida. Não é só espantoso de observar, é uma prova de que o grupo domina a ação.
Ruhmachrichten, 26 de março 2003