Pilotar Marionetas com engenho
“Nos meus 14 anos tinha a mania que, um dia, havia de construir um automóvel”. Mas foram precisos 40 anos para que o diretor do Teatro de Marionetas do Porto (TMP), João Paulo Seara Cardoso, concretizasse algo parecido com esse sonho tão ambicioso quanto pueril. Para a nova produção do TMP, “Make Love Not War” (a partir da comédia grega “Lisístrata”, de Aristófanes), o encenador portuense está a preparar “umas máquinas cénicas que se locomovem. Estruturas metálicas que contêm marionetas, mas também motor, travões e direção”. Os inusitados veículos destinam-se à primeira experiência do TMP em teatro de rua (além da participação na “Peregrinação” da Expo-98, com a Máquina-Homem/Clone-Fighters), durante a próxima edição do Festival Imaginarius, em maio.
Na verdade, a “infância feliz” de Seara Cardoso parece ter sido o cinzel que gravou, com precisão renascentista, o futuro do encenador nascido no Porto, em 1956. O pequeno João Paulo era um daqueles putos curiosos e engenhoqueiros que não resistia a desmontar tudo o que lhe aparecia à frente. “Sempre tive uma inclinação por mecanismos e máquinas, para conhecer o funcionamento das coisas. E, a partir de certa altura, comecei a desenhar automóveis”. Por isso não é de estranhar que, antes da passagem pelo politizado liceu D. Manuel II (onde participou numa greve às aulas ainda antes da Revolução de abril), Seara Cardoso já tivesse decidido seguir Engenharia Mecânica. “Foi uma decisão que tomei muito cedo”, salienta.
Mas seria também na infância que o diretor do TMP sofre a influência marcante do seu tio-avô, Fortunato Seara Cardoso, carismático diretor de O Comércio do Porto e genro de um dos principais impulsionadores deste periódico, Bento Carqueja. “Ia muitas vezes visitar o jornal e sempre tive uma admiração muito grande por esse tio – um tipo pequeno, com o cabelo branco e comprido como o do Einstein. Tinha uma personalidade muito forte e batia o pé à ditadura”, recorda Seara Cardoso. Refira-se, igualmente, que os tempos de meninice terão ainda esporeado a capacidade de efabulação de Seara Cardoso. “Os espetáculos que faço hoje para crianças e os livros para a infância [nove já publicados] que escrevi refletem, sem dúvida, as brincadeiras no jardim de minha casa”, em Cedofeita. “Imaginei muitas histórias enquanto brincava no jardim”.
Passada a “infância maravilhosa” e a adolescência sobressaltada pelo 25 de abril, Seara Cardoso ingressa, no final da década de 70, na Faculdade de Engenharia (FEUP). Mas antes ainda viveu as agruras do Serviço Cívico Estudantil, de onde desertou após uma semana a cavar valas nas estradas do Marão, sob um frio inclemente. A desorganização do Portugal pós-revolucionário puseram-no a salvo de qualquer punição e Seara Cardoso pôde abraçar o curso de Engenharia Mecânica da FEUP, onde encontrou o “porreirismo instalado”: “Fumava-se nas aulas e tratavam-se os assistentes por tu”. Contudo, ressalva, havia “sentido de responsabilidade” e “eu tinha excelentes notas”.
O adeus à FEUP
Apesar do sucesso escolar e do gosto pelo curso, Seara Cardoso abandona a FEUP no final do 3º ano. “Havia outros interesses misturados na minha vida: o teatro e o automobilismo”. O teatro era um “bichinho” que crescia imparavelmente, sobretudo a partir da inscrição num curso ministrado pelo TUP (Teatro Universitário do Porto). E as corridas de automóveis uma paixão assolapada que o levava, todos os fins de semana, a rebolar-se (literalmente) dentro de um Citroën 2CV, em pistas enlameadas. Na altura, o encenador era piloto de Pop Cross, competindo profissionalmente no intenso campeonato nacional da modalidade.
Mas, para o abandono da FEUP, terá sido ainda mais determinante o desvanecer da utopia do engenheiro criativo”. Em visitas a fábricas durante o curso de Engenharia Mecânica, Seara Cardoso deparou com um “espírito” que compara ao de “Metropolis”, de Fritz Lang. “uma das funções principais dos engenheiros mecânicos nas fábricas, nesse momento, era reduzir o mapa de pessoal”. O que conflituava com a “veleidade utópica de mudança do mundo e de humanização das coisas” do jovem estudante.
Deixada a FEUP para trás, Seara Cardoso continua o curso no TUP – onde recebe a sua “formação teatral mais marcante e ortodoxa”, por João Coimbra – e participa no Teatro Amador de Intervenção. Embora incompletos, os ensinamentos recebidos em Engenharia Mecânica seriam úteis à carreira teatral que então iniciava. “Aprendi a imaginar as coisas no espaço e a ter a capacidade de as desenhar e projetar, o que tem muito a ver com a minha prática ligada às marionetas e com o lado mecânico do teatro”. Aliás, “também faço a cenografia dos espetáculos”. As marionetas surgem pouco tempo depois. Mais concretamente em 1978, quando se assinala o Ano Internacional da Criança. “Fazia espetáculos para 500 crianças em escolas, salões de bombeiros, centros recreativos… Foi uma experiência fantástica de democratização cultural”. Experiência, de resto, muito semelhante à que viveu no FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis), onde no início dos anos 80 foi responsável pelas áreas do teatro de marionetas, etnografia e música. Graças à sua atividade de animador cultural do FAOJ, percorreu o país e tomou contacto com o teatro popular (Serração da Velha, Festas dos Rapazes, Enterro do Judas, Festa da Bugiada… ). Conheceu então duas figuras que o marcaram bastante: o etnólogo Ernesto Veiga de Oliveira e o mestre António Dias, “o último representante de uma geração de bonecreiros”. Seara Cardoso não tem dúvidas: “o meu gosto pelas marionetas vem do teatro popular dos ‘robertos’”.
Com António Dias, Seara Cardoso aprendeu justamente a tradição dos “robertos” (marionetas de raíz popular que representam histórias curtas, cheias de ação e muito humor). Após o falecimento do mestre, Seara Cardoso sentiu “obrigação” de prosseguir o seu legado. Mas, para tanto, era necessário despir a farda de “intelectual” e deixar-se imbuir pelo “espírito dos bonecreiros”. E, assim, fez-se à estrada no seu 2CV, onde também dormia, para apresentar o Teatro Dom Roberto. Qual saltimbanco, chegava às localidades mais recônditas do país, escondia o carro para dissimular as origens burguesas e apresentava espetáculos com a malinha dos “robertos”, uma barraca rudimentar e uma roufenha aparelhagem sonora. No fim, pedia dinheiro com um chapéu estendido. “Queria conhecer esse lado de humildade, de compreensão do fenómeno da arte popular”, justifica.
Autor de “Os Amigos de Gaspar”
Ultrapassada a vida de andarilho, Seara Cardoso passou a encenar, em ambiente de cabaré, uns espetáculos “delirantes” com marionetas. Estes happenings aconteciam todos os sábados no café-teatro Realejo, no Porto, e eram recebidos em êxtase pelo muito público. Tanto assim, que, depois de assistir a um destes espetáculos, um produtor de televisão convida Seara Cardoso para criar um programa infantil. Assim surgiu, em 1985, “A Árvore dos Patafúrdios” e, mais tarde, “Os Amigos de Gaspar” (“marcou uma geração”, garante), “Mópi” e “No Tempo dos Afonsinhos”. Nestes programas televisivos, Seara Cardoso trabalhou com Sérgio Godinho, Jorge Constante Pereira e Carlos Dias. Importa referir, a propósito, que o encenador tinha pouco antes enriquecido a sua formação com cursos no Institut National d’Éducation Populaire e no Institut International de la Marionette, onde trabalhou com Jim Henson, o criador de “Os Marretas”.
Depois da aventura televisiva, vinha Seara Cardoso embalado por mais uma torrencial noite de poesia no Pinguim Café quando depara, naquela mesma Rua de Belomonte, com o edifício onde nasce, em 1988, o TMP. Encontrado o local e formada a companhia (além do diretor, a equipa conta hoje com um produtor, um assistente de produção, três técnicos e três atores), sobe à cena a primeira peça do TMP: “Miséria”. Mas o reconhecimento pelo grande público só surge em 1993, com a sátira social e política “Vai no Batalha”. O espetáculo zombava de várias personalidades públicas (Santana Lopes, Fernando Gomes, Mário Soares, Cavaco Silva, etc.) e parodiava alguns fenómenos sociais emergentes, como os “arrumadores”, o novo-riquismo ou a “subsidiodependência”. Uma das personagens mais hilariantes, Fredo Brilhantinas, o “arrumbador de biaturas ligeiras”, era inspirada num toxicodependente que, num dia de desatino, “arrumou” o carro de Seara Cardoso no rio Douro.
Não obstante a popularidade que granjeou ao TMP, o “Vai no Batalha” “não estava a acertar no alvo” que Seara Cardoso tinha pensado para a companhia. Donde, o diretor do TUP decide destruir o cenário da peça à machadada, apesar dos pedidos para que esta percorresse o país e fizesse uma temporada em Lisboa. Segue-se então novo espetáculo, “Terceira Estação”, que Seara Cardoso define como “puramente experimental” e que resulta do cruzamento das marionetas com a dança. Foi assim estabelecido um novo rumo estético para o TMP: a introdução da contemporaneidade no teatro de marionetas, através da miscigenação com outras linguagens artísticas (dança, música, artes plásticas, vídeo, novas tecnologias digitais, etc.) e da presença visível dos atores em palco. Hoje, o TMP “tem uma personalidade teatral visual muito vincada”, salienta o seu diretor.
O TMP conta já com mais de 30 produções no seu currículo. Ainda assim, ao longo destes mais de 20 anos, Seara Cardoso sentiu “necessidade de trabalhar em teatro sem marionetas”. Por isso encenou, para a companhia Visões Úteis peças como “A Cantora Careca”, de Ionesco (1996), “Gato e Rato”, de Gregory Motton (1997) ou “Filme na Rua Zero L”, de Al Berto (1999). Além disso, encenou a ópera “O Lobo Diogo e o Mosquito Valentim”, numa coprodução Casa da Música / Orquestra Nacional do Porto. Na dramaturgia aprecia alguns autores britânicos contemporâneos, como Sarah Kane, e é um “apaixonado por [Samuel] Beckett”. Mas continua a “cair nos clássicos, porque são as obras fundadoras”.
Hoje, a menina dos olhos de Seara Cardoso é o futuro Museu do Teatro de Marionetas do Porto, que o encenador está a erguer, sem qualquer apoio público, na Rua das Flores. Num edifício já parcialmente remodelado, vai ser possível conhecer o espólio de marionetas do TMP, quase todas criadas pelo ilustrador Júlio Vanzeler.
in UPORTOALUMNI, Nº 10, II Série, Março de 2010