TNSJ entrevista  Isabel Barros, 2012

Oito perguntas a Isabel Barros

  1. Impossível pensar neste projeto sem pressentir nele a catarse de alguns fantasmas. Este é o primeiro espetáculo do Teatro de Marionetas do Porto sem a assinatura de João Paulo Seara Cardoso. Passando ao largo da fatalidade algo consumista de que the show must go on, Ovo é a prova provada de que recomeçar é uma inevitabilidade e que tudo é de novo possível?

Vou começar pelo fim da tua questão, pela inevitabilidade de recomeçar. Começar outra vez, começar de novo a partir do mesmo lugar agora diferente. Continuar a história, criando novas histórias. Nunca imaginei o fim desta história, imagino-a sempre como um sonho sonhado que se transforma a cada instante. Ter vivido todos estes anos com o João Paulo, partilhando toda a sua paixão com a Companhia que fundou e com a qual realizou obras inesquecíveis, ter estado ao seu lado sempre participando nas descobertas e no entusiasmo permanente de cada processo, permite-me sentir esta livre vontade de continuar e continuar. Nesse sentido, recomeçar é mais continuar, é como transformar, dar uma nova forma, uma nova ordem.

Volto agora ao início da questão, à catarse, sim! Após, uma fase de intenso trabalho ao longo de 2011, com circulação das peças de reportório pelo país e pelo estrangeiro, chega agora o momento de uma criação, a primeira em que toda a equipa, “os sete magníficos” realizam um projeto com vários colaboradores, a partir de uma ideia de Eric de Sarria, e que será  a marca desta nova fase. A catarse sim, como uma passagem para a libertação de alguma forma. Ao longo de 2011, já a tinha iniciado, provocando os atores para a reposição de dois espetáculos que eram realizados a solo pelo João Paulo, nomeadamente o Capuchinho Vermelho XXX e O Teatro D.Roberto.

Nada se apagará, só se a memória se apagar, encaro a morte não como um fantasma, mas como uma outra forma, e isso ajuda-me a ter vontade para continuar.

  1. Sabemos da existência de um convite ao marionetista francês Philippe Genty para assegurar a encenação. Sabemos das cumplicidades entre a Compagnie Philippe Genty e o Teatro de Marionetas do Porto, como o gosto por um teatro imagético, com uma dimensão poética, não naturalista. Mas por detrás desse convite morava também um desejo latente de convocar um mestre para prestar homenagem a outro mestre?

Sim, quando pensei em convidar um encenador, de imediato os nomes que me surgiram foram nomes grandes, na sua maior parte oriundos de França, pelas relações que tenho com esse país e pela afinidade que sinto com a cultura francesa. Para os atores, para os alunos, para os profissionais, o João Paulo era o mestre, alguém que com o seu saber tocava os outros e transmitia enorme confiança. Philippe Genty, foi um desses nomes que me surgiram. Imaginei que o cruzamento do seu universo com o universo criado por o João Paulo pudesse resultar num encontro feliz! O teatro imagético, a dimensão poética, não naturalista, como referes, são marcas comuns, mas com processos e resultados totalmente diferentes se fizermos um paralelismo entre as peças criadas para a Compagnie Philippe Genty ou Teatro de Marionetas do Porto. Era esse encontro de poéticas que me interessava. Philippe Genty, na altura do convite estava também doente e Eric de Sarria, o mais próximo ator da companhia, e um dos responsáveis pela continuação do seu trabalho, aceitou e pareceu-me um belo desafio. No nosso primeiro encontro em Paris, falamos do que poderia ser este encontro de universos, falamos de transmissão, de memória, por um lado porque o próprio Eric estava nesse momento a tomar conta de uma mudança na companhia, o facto do Philippe Genty estar doente, as implicações disso na companhia, e todas as questões que se colocam e o encontro com quatro atores do TMP, herdeiros de um trabalho profundo com o João Paulo. Não chegamos logo ao Ovo, mas já estávamos lá! O que é o início? O que é o fim? O que é que está dentro? O que é o inverso? E tantas outras questões.

Ovo é símbolo de renovação, interessava-me que este começar de novo fosse marcado por uma experiência que de alguma forma pudesse colocar novas questões, novos conflitos, por isso o convite a colaboradores que nunca tinham antes trabalhado nas criações TMP.

  1. No guião original de Eric de Sarria encontramos alguns fios narrativos, mas encontramos sobretudo um potencial de conceitos (espaço, tempo, corpo, inversão, dilatação, fragmentação) e de imagens (cabeças falantes que surgem do interior de caixas) a explorar. Como se conquistou esta espécie de memória descritiva do projeto?

Num momento inicial o Eric enviou-me as primeiras ideias que me pareceram muito inspiradoras. A partir daí, e depois de um primeiro encontro com os atores, no qual, a ideia foi sobretudo conhecerem-se, falarem e experimentarem um pouco a partir da memória, tudo se iniciou de uma forma orgânica. O Eric trabalhou numa série de ideias de espaço, objetos e possibilidades. Um longo trabalho de experimentação foi feito com os atores, muito apoiado nos materiais recorrentes que o Eric e a Companhia P.G. utilizam, ou seja, espaço totalmente envolvido por materiais, de onde podem surgir figuras, e serem construídas e desconstruídas histórias. Ao longo desse tempo de experimentação, eu estive presente nas discussões artísticas e também nas escolhas, nomeadamente dos colaboradores, assim surge o convite para a música ser composta pelo Pedro Tudela e Miguel Carvalhais, que me parecia ser a aposta certa para este projeto. Eu já tinha trabalhado com o Pedro Tudela em Là oú je dors e o resultado da colaboração foi maravilhoso. Com o avançar da experimentação e antes de fixar ou fechar o espetáculo fizemos um encontro de ideias, no fundo entre as expectativas e as propostas. Aí chegamos a uma vontade de desmontar as peças e a partir delas encontrar um novo lugar, o nosso lugar, o da construção. Nesse momento e porque se trata de uma cocriação, o Eric abriu-se a essa possibilidade de desconstruirmos materiais. Nessa segunda fase, eu e os atores introduzimos novos elementos, novas marionetas, matéria/alma do nosso trabalho sem nunca abandonar o conceito. Este Ovo resulta desse encontro de opostos, diferenças, é verdadeiramente algo forte e frágil que contém a essência.

  1. Esta primeira base de trabalho foi sendo progressivamente sobressaltada pelas palavras do conto “O Ovo e a Galinha” da escritora brasileira Clarice Lispector. Podes falar-nos um pouco dessa infiltração e dos efeitos que foi produzindo na reconfiguração da dramaturgia do espetáculo?

Na verdade o texto da Clarice Lispector aparece na segunda fase de trabalho. Sentimos necessidade de palavras, e na pesquisa de textos surgiu este O Ovo e a galinha. Depois de extrair a palavra Ovo às frases que retiramos desse texto, ele tornou-se mais enigmático e mais capaz de “servir” a ideia que precisávamos. Há uma espécie de pequenas representações dentro da peça, teatro dentro do teatro, atores perdidos ou manipulados, e estas palavras, frases entraram e infiltraram-se. Nesse momento acrescentam algo, são uma espécie de reflexão sobre a vida, isso pareceu-nos pertinente. São palavras também que evocam a memória, o texto surge aqui separado das marionetas, serve a voz dos atores que parecem estar em constante procura dentro de uma teia, perdidos talvez, e a tentarem encontrar o lugar…Em Ovo as marionetas não falam, estão no seu estado mais puro, são uma espécie de anjos mudos, criaturas que nos fazem viajar entre o real e o imaginário. Com cabeças ovaladas, corpos grávidos, ou esvoaçantes, as marionetas de Ovo perecem chegadas de um agora futuro.

  1. Da constante mobilidade dos módulos cenográficos à fluidez da marcação dos movimentos dos atores e das marionetas no espaço, sem esquecer a circularidade das palavras, tudo parece dançar em Ovo. Esta dimensão coreográfica não é propriamente uma novidade no percurso da companhia, e para tal bastaria lembrar 3.ª Estação (1994) ou Paisagem Azul com Automóveis (2001). Mas podemos afirmar que ela assume aqui uma, digamos, preponderância?

Ovo contêm a matéria de que é feita a linguagem atual do TMP, dessa linguagem fazem parte a dimensão coreográfica, a utilização das marionetas assumidamente manipuladas à vista, o texto/a palavra, o canto, a forte relação com o espaço/cenografia, o cruzamento com vídeo, dança, música, e claro um trabalho de atores que eu diria inquieto e de pesquisa permanente. O João Paulo sempre foi fascinado por atores capazes de dar resposta a propostas que fossem ousadas, para ele o ator teria de poder cantar, dançar, falar, tudo isso e ainda ser um bom marionetista. A Sara, o Edgard, a Shirley e o Rui têm essa “escola”, tiverem esse mestre, e é inevitável que essa matéria passe como uma marca da companhia.

Em 3ª Estação, espetáculo que marcou o primeiro encontro entre o meu e o trabalho do João Paulo, experimentamos de facto o significado de cruzamento. Um dia o João Paulo chegou a casa com uma marioneta que tinha construído, na sua oficina no teatro de Belomonte, lugar onde passava muitas horas dedicado à construção. Pediu-me que fizesse uma improvisação. Vesti a marioneta com um longo casaco preto. Foi um momento que nunca poderei esquecer, foi delirante, parecíamos duas pessoas em êxtase, algo de realmente extraordinário se passou nessa noite na Granja. Percebemos que estava ali aquela que iria ser a personagem de um espetáculo que ainda estava em desejo. Foi um daqueles momentos felizes que assinalam descobertas.

A partir desse momento, nos espetáculos seguintes estive sempre ao lado do João Paulo como colaboradora, mais ou menos presente/visível.

Voltando ao Ovo, sendo esta uma nova forma, que vem de um mesmo lugar, terá necessariamente essa dimensão coreográfica que falas, não consigo dizer se assume aqui preponderância.

  1. A ideia de uma identidade que se estilhaça e reconfigura atravessa todo o espetáculo. E é interessante notar como ela se vai materializando em cena, como se os intérpretes formassem um só corpo coeso e orgânico, com várias cabeças e tentáculos. Seria demasiado abusivo considerar que Ovo é um quase solo para quatro atores e marionetas?

Essa ideia é muito interessante, um corpo que contêm vários corpos, um solo para quatro atores. Talvez seja o grito a uma voz. Neste processo, diferente de todos os outros, os atores sentiram coisas novas. Num primeiro momento talvez interesse em se abrirem a algo novo, mas também o medo do desconhecido, a sensação de estarem a ser conduzidos para lugares que não eram os do conforto. As dificuldades de partir de uma forma neutra, branca, tudo isso foi vivido pelos quatro, e houve na viragem uma necessidade de se unirem, de criarem uma força comum, não que ela já não existisse, mas aqui encontra de facto um sentido. A necessidade de se unirem na cumplicidade de criar, cocriar talvez tenha imprimido essa voz a solo.

  1. No texto aqui ao lado, Regina Guimarães dá conta da característica “invulgarmente matérica” da banda sonora. Posso pedir-te que partilhes connosco as conversas que foste tendo não só com o Pedro Tudela e o Miguel Carvalhais, mas com todos aqueles que foram contribuindo para o levantamento da componente plástica deste Ovo? [marionetas, cenografia, figurinos, vídeo…]

Todos partiram da ideia do Eric de Sarria, as indicações iniciais aos colaboradores foram dadas pelo Eric. Essas indicações tinham como base um guião de imagens, de possibilidades, tinham também uma ideia de cenário, no qual os objetos, as marionetas e os atores iriam habitar. Ambientes de memória, de paisagem do passado mas também do futuro. A ideia também do ovo enquanto metáfora de algo que ainda não existe mas já é. Num segundo momento, retomei esses ambientes e em conjunto com os atores continuamos o processo de pesquisa e experimentação e assim fomos contaminando e sendo contaminados pelo Pedro Tudela, Miguel Carvalhais, Rui Pedro e Albert Coma.

Nesta fase em que estou a responder o espetáculo ainda está em processo, pelo que há provavelmente coisas que ainda não apareceram, contudo uma das ideias que o percorre é uma espécie de procura de um lugar dentro do lugar, uma construção e desconstrução permanente, uma espécie de estado de inquietação, de inconformismo.

  1. Assumes com naturalidade a direção artística da companhia e com ela a responsabilidade de projetar no futuro um extraordinário legado. Entre continuidades e ruturas, o que vamos encontrar nos próximos capítulos da história do Teatro de Marionetas do Porto? [Surgirão convites a encenadores externos ou a figura de cocriação em que assumes a direção de cada projeto vai ser a via preferencial de trabalho? O repertório da companhia vai continuar em circulação? Qual o ponto de situação do Museu do TMP?]

Há coisas que nunca imaginamos, e ainda bem, assim somos livres de viver acreditando que temos todo o tempo para percorrer todos os lugares e encher a nossa vida de coisas fantásticas. Essa sempre foi a forma como vivemos. Quando o João Paulo ficou doente, vivemos todos os momentos desse pedaço da nossa história da mesma forma, com a mesma intensidade de sempre e sem perder de vista a força que nos ajuda a estar de pé todos os dias e a afrontar as barreiras de cada dia. Durante esses três meses de luta até à morte, havia sempre uma luz, uma esperança, e nessa altura o João Paulo pedia-me sempre para o substituir nos ensaios enquanto ele estivesse doente. A nossa cumplicidade e confiança dava-lhe paz. O que fiz sem hesitar após a sua morte, foi continuar. Tudo o que foi criado tem uma vida para continuar, as marionetas não morrem! E talvez também não esqueçam, talvez sejam uma espécie de anjos mudos. O ano de 2011 foi exemplar em termos de dinâmica e trabalho para a companhia, a circulação de Frágil, a reposição e circulação das peças em festivais internacionais e em todos os festivais de marionetas em Portugal, onde a homenagem ao João Paulo esteve presente, o que é tocante, e dá toda a dimensão do seu maravilhoso trabalho, reconhecido por todos, fez de 2011 um ano cheio de emoção quase permanente. As ideias que tenho para a companhia são a continuidade do trabalho de reportório durante os próximos anos, a criação de novas peças que podem ser dirigidas por encenadores convidados, ou serem cocriações, ou ainda dirigidas por mim, em qualquer das opções a ideia central é manter a marioneta no centro da pesquisa e cruzamento disciplinar. Além das criações, o teatro de Belomonte irá ser aberto, adoro aquele teatro de bolso, que reclama por estar aberto. Estamos naquele ponto de consciência do que existiu e vontade e capacidade de continuar a lutar para que muitos novos ciclos possam ainda existir.

O Museu, está de momento em obras, demoramos a arrancar por razões financeiras. O meu sonho era abrir em Fevereiro, missão impossível, mas que se tornará possível antes do Verão, talvez em Maio, em data que irei anunciar brevemente.

TNSJ entrevista  Isabel Barros

2012