ORIGENS HISTÓRICAS
A expansão da Commedia dell`Arte para além das fronteiras da Itália e a consequente disseminação de comediantes e bonecreiros itinerantes pela Europa constitui o factor determinante do surgimento dos heróis populares. Neste contexto irá evoluir o teatro de fantoches de raíz popular, em Portugal.
Durante a Idade Média os fantoches tinham tido uma acção preponderante nas representações litúrgicas e foi, pois, nas igrejas, nos conventos e nos mosteiros que os bonecreiros encontraram refúgio certo e ganha-pão seguro.
Este “estado de graça” terá durado vários séculos. Mas a irreverência dos fantoches, o seu espírito crítico e a sua natural tendência para a representação burlesca, o que provocaria, por certo, o riso no seio das multidões fervorosas, determinariam, mais tarde, a sua definitiva irradicação dos locais de culto, de acordo com o espírito da contra-reforma.
Em Portugal, este factor é particularmente sentido. A permanência dos fantoches nos actos religiosos é tão forte e o seu discurso tão povoado de sermões, através dos quais os “frades-fantoches” exaltavam a vida de Cristo e dos santos, que eles passam a ser designados por “Bonifrates” (“bonnus”+”frater”) e durante vários séculos as representações são ainda popularmente conhecidas por “presépios”.
Seria, pois, após o Concílio de Trento (1545) e particularmente do Sínodo de Orihuela (1600), que reiterou a proibição de representar “as acções de Cristo, as da Virgem Maria e a vida dos santos por meio de figuras móveis”, que acabaria o reinado religioso dos fantoches. Nascem então as pequenas companhias representando autos religiosos de delicioso sabor popular e os solitários bonecreiros que calcorreiam as ruas e as terras portuguesas em busca de um novo sustento.
É nos meados do séc. XVII que começam a chegar, em grande número, os artistas itinerantes estrangeiros, sobretudo franceses e italianos, que encontram público certo e generoso nas grandes cidades. E deste modo chega também Polichinelo, um ilustre emigrante, que conquista os corações do povo com as suas picardias. Sabida que é a apetência dos portugueses para o que vem de fora, não é de estranhar que o herói Polichinelo se tenha facilmente estabelecido, como acontecera já, aliás, em grande parte do território europeu. Por outro lado, o caracter português tende também a apropriar-se dos estrangeirismos. Esta simbiose de representações teatrais vindas do exterior com as já existentes terá resultado num processo de aculturização, aliás comum na história da cultura portuguesa, que origina o aparecimento de um novo personagem, um verdadeiro herói popular: Dom Roberto.
É certo que não terá sido este o seu primeiro nome. Roberto é apenas uma das muitas designações conhecidas no séc. XVIII, que se viria a impôr e, mais tarde, a generalizar-se. Duas hipóteses se colocam para a origem deste nome. Uma delas parece ter sido o grande êxito alcançado pela representação de uma Comédia de Cordel intitulada “Roberto do Diabo”, que as investigações confirmam tratar-se de uma importante peça do reportório clássico europeu de fantoches; outra origem estaria associada a um célebre empresário de Teatros de Fantoches, chamado Roberto Xavier de Matos, que terá deixado o seu nome ligado, para sempre, às representações de “robertos”. Mas, para além destas hipóteses, uma certeza existe: a palavra Roberto tem uma sonoridade ideal para ser produzida pela voz do bonecreiro que utiliza a palheta, técnica que limita consideravelmente o número de sons possíveis de articular com clareza – convém não esquecer que uma das características peculiares do Teatro Dom Roberto é o facto de, ao contrário de todos os outros teatros tradicionais europeus, todos os personagens falarem com “voz de palheta”. Por isso, o seu vocabulário se baseia num conjunto de “palavras-chave” que contém o som mágico da voz dos “robertos”, o “rrr”: porra, rapaz, carolada, touro, trucla-trucla, arroz, bruto, além de todos os nomes de mulheres, Rosa, Rata e Rita e de um grande número de estranhas onomatopeias: brrr, prrriu, turrrututu, quirrri…
REPORTÓRIO
É ao nível do reportório que mais facilmente se detectam as influências que determinaram o aparecimento do Teatro Dom Roberto. A sua análise fornece-nos informações preciosas sobre os contextos sócio-históricos que marcaram a sua evolução através dos tempos, nos quais o fantoche sempre se assumiu como veículo do sentir popular.
No conjunto de peças conhecidas encontramos histórias “clássicas” do reportório europeu, reinventadas, outras que nasceram de ímpetos colectivos determinados por situações politico-sociais e até religiosas, de contos da sabedoria popular, de manifestações da cultura tradicional e ainda do chamado Teatro de Cordel (teatro de comédia ou drama muito em voga no séc. XVIII, que deve o seu nome ao facto dos textos serem apregoados nas ruas, impressos em grandes folhetos dependurados num cordel).
A mais famosa peça que chegou aos nossos dias, passada de geração em geração de bonecreiros, é “O Barbeiro”. Nela é evidente a simbiose da tradição europeia com a cultura portuguesa. Tudo começa de uma forma muito ingénua: no dia do seu casamento, Dom Roberto vai ao barbeiro para cortar a barba. A acção desenvolve-se por entre um sem-número de peripécias cómicas ao longo das quais o ritmo da acção vai crescendo. No final o nosso herói recusa-se a pagar, porque acha o preço muito caro (10 tostões) e envolve-se em grande pancadaria com o barbeiro, que acaba por morrer. Até esta altura, a trama é claramente inspirada nas representações burlescas dos ofícios (o do Barbeiro), que integravam as famosas procissões do Corpus Christi, nas quais, atrás de carroças exibindo alegorias religiosas, vinham grupos de gente representando os diversos misteres, quase sempre de forma caricata, para grande gáudio do povo que a elas assistia. Ainda hoje esta situação constitui um clássico do humor dos “palhaços” e, curiosamente, vamos também encontrá-la no reportório dos Bonecos de Santo Aleixo, as pícaras marionetas de varão do sul de Portugal.
A partir da morte do barbeiro, constituindo a morte um elemento activador de uma nova ordem dramatúrgica, a representação segue de perto os passos da tradição europeia, ainda hoje visível em vários países. E os personagens, quase poderíamos dizer “arquétipos”, representativos dos poderes e dos medos que regem a existência humana, sucedem-se: o padre que vem fazer o funeral do pobre barbeiro, o polícia que pretende prender Dom Roberto, o Diabo que tenta arrebatar a sua alma para o Inferno e, finalmente, a Morte, o “castigo” máximo do homem. Naturalmente que o nosso herói acaba por sair vencedor de todos os confrontos e termina em delírio, gritando: “Eu matei a Morte! A Morte está morta!”.
Diante da barraca o público aplaude e vai-se dali feliz por o seu herói ter corporizado alguns dos seus mais profundos desejos.
Outras peças, bastante significativas, integram o reportório conhecido do Teatro Dom Roberto: “A Tourada”, recriação graciosa de uma tradição nacional; “A Rosa e os Três Namorados”, com origem numa comédia de cordel; “O Castelo dos Fantasmas”, adaptação do conto popular “João-Sem-Medo”, na qual Dom Roberto enamorado vai salvar uma princesa que está aprisionada na torre de um castelo, tendo, para tal, que vencer toda a galeria de monstros representativos dos medos (o fantasma, o gigante, o dragão e, claro, o Diabo); e ainda, sem dúvida, um grande conjunto de peças mais individualizadas ou de cariz regionalista que, por esse motivo, não se generalizaram, vindo a perder-se no longo caminho até aos nossos dias.
Uma curiosa obra, bem representativa do modo como o génio popular soube satirizar um trágico período da nossa história, é uma comédia intitulada “O Marquês de Pombal e os Jesuítas”. Através dela, o povo exteriorizou o seu ódio profundo à impiedosa Inquisição portuguesa e, uma vez mais, são as mãos mágicas do bonecreiro que dão forma ao sentimento popular: no final da peça, os Inquisidores, que se preparam para fugir para o Brasil, são atirados de um barco para as águas infestadas de tubarões, que os vão devorando. De cada vez que isso acontece, Dom Roberto exclama: “Mais um padreca!”. E a assistência rejubila e pede mais…
TIPOLOGIA DO PERSONAGEM
O mais ocidental de todos os descendentes do grande herói Polichinelo não apresenta, como acontece com os seus familiares europeus, um tipo fisionómico próprio. Por vezes o personagem tende a diluir-se nos outros seus companheiros de acção – o que explica a designação popularmente usada de “robertos” para este tipo de teatro. Digamos que o que permanece em Dom Roberto como traço relevante herdado da grande família, é a alma, o carácter, e não o aspecto físico. Por isso, as poucas representações antigas que se conhecem do personagem Dom Roberto são diferentes entre si, não havendo nenhuma persistência ao nível da forma. Cada bonecreiro construía o seu próprio “herói”, poderá dizer-se.
Cabeça
A cara é sempre talhada com uma grande “ingenuidade escultórica”, os olhos são grandes e vivos, a boca sorridente, os restantes traços são sóbrios e discretos. Nesta singeleza formal o fantoche não perde nunca o ar matreiro, a “esperteza saloia” de herói popular. A cor, essa sim, é normalmente muito característica: o rosa forte, persistência, sem dúvida, do tom genérico da cerâmica popular do norte de Portugal, os célebres “bonecos de barro”.
Vestimentas
As vestimentas são tão singelas quanto a cara do fantoche e de cores bastante garridas. Quanto ao talho, o suficiente apenas para esconder a mão do bonecreiro permitindo, ao mesmo tempo, uma grande agilidade ao nível dos movimentos. Também aqui, poderíamos dizer, a construção do “roberto” aposta mais nas possibilidades de movimentação frenética do que na “nobreza” dos gestos e atitudes, que resultam de vestidos mais elaborados.
Acessórios da cena
Dom Roberto serve-se frequentemente de acessórios que, embora também muito simples, constituem um elemento fundamental da acção. A sua arma é, como habitualmente, um pau, mas um pau grotesco e robusto com um talho longitudinal que permite obter um som mais ruidoso nas frequentes cenas de pancadaria. Aliás, todos os adereços são uma espécie de instrumentos de percussão que pontuam ritmicamente a acção, transformando-a numa maravilhosa sinfonia de movimentos e estranhas sonoridades. Outros importantes acessórios da representação são: a frigideira, a vassoura, a navalha, o pano, o capote de toureiro, a caneca.
A BARRACA
A singeleza do Teatro Dom Roberto, nos seus vários aspectos referidos, encontra particular expressão no dispositivo cénico, que é o mais simples de todos os conhecidos.
A barraca é aberta na parte superior, sendo constituída apenas por quatro lados que formam um quadrado com cerca de um metro de lado, medida máxima que permite a um único bonecreiro colocar dois bonecos em todos os pontos possíveis do espaço de representação. Este tipo de barraca possibilita ainda que o público se disponha “ao redor” e não apenas em posição frontal.
Construída numa estrutura leve de madeira, é tradicionalmente revestida de “chita”, um tecido muito popular e barato, estampado com cores garridas e belos desenhos. Os cenários não existem, ou melhor, digamos que desta concepção de barraca resulta que o décor passsa a ser constituído pelo meio envolvente: o céu azul, as árvores de um parque ou a fachada de uma casa, situação esta frequente nas representações efectuadas nas cidades. Elementos soltos de cenário aparecem, por vezes, não com uma função decorativa mas por necessidade das próprias histórias: um castelo, uma arca, um guarda-vestidos, as ondas do mar, um barco… e até aparelhos de circo que nas representações antigas serviam para ratos amestrados mostrarem as suas habilidades com o objectivo de atrair público para a função.
Em duas gravuras que nos mostram cenas típicas da Lisboa oitocentista, encontramos outras formas de representação: numa delas a barraca reduz-se a um simples pano que é dependurado no vão da porta de uma casa, atrás do qual o bonecreiro representa; a outra mostra-nos um espectáculo dos curiosíssimos “Títeres de Capote”, bastante populares em Portugal e no Brasil, e no qual um homem/músico se serve da sua própria capa para esconder um jovem bonecreiro.
VIDA DOS BONECREIROS
Muito pouco se sabe acerca das representações antigas de fantoches e dos homens que as faziam.
Heróis da marginalidade artística, eram nesses tempos vistos como gente pobre sem eira nem beira, que tinham a única virtude de divertir o povo. Os historiadores teatrais não lhes registaram a memória.
A partir da entrada deste século já se torna, porém, possível fazer um historial mais pormenorizado da vida dos bonecreiros. Infelizmente, este fio humano de vários séculos, que são as sucessivas gerações de bonecreiros desvanece-se no nosso tempo, por volta dos anos sessenta, com o advento de novas formas de comunicação e diversão.
Neste último período, as feiras são um dos locais privilegiados de actuação dos bonecreiros. Organizam-se companhias de feira que atingem grande celebridade e que fazem enriquecer os seus empresários. Estes teatros eram instalados em espaçosos pavilhões de madeira, desmontáveis, e neles se oferecia ao público um reportório popular baseado nas peças clássicas, mas com uma maior dose de sofisticação, com a introdução de cenários, vistosos efeitos de cena e até orquestras privativas. Mestre Faustino é o mais famoso empresário deste século ligado aos teatros de feira e que marcou todas as gerações de bonecreiros que se lhe seguiram.
Com o declínio das companhias de feira, os bonecreiros carregam de novo a barraca às costas e tentam a aventura solitária da sobrevivência, encarnando o verdadeiro espírito do Teatro Dom Roberto. Não é difícil seguir os seus passos de há algumas décadas atrás. Retomam a rota das feiras e romarias de Portugal, onde encontram público certo. No Verão percorrem a costa marítima de norte a sul, apresentando os seus espectáculos nas praias e no Inverno, quando o tempo o permite, representam nos jardins e ruas das cidades ou nos largos das vilas e aldeias.
Da última geração de bonecreiros populares merece justo destaque Mestre António Dias. Nascido de família humilde no Rossio-ao-Sul-do-Tejo, pequena povoação ao norte de Lisboa, foge de casa dos pais aos 16 anos e vai tentar a sorte na feira de Setúbal, onde arranja emprego no teatro de Mestre Faustino. Aí trabalha durante alguns anos, aprendendo a arte e saber dos “robertos”. Com a falência do empresário, António Dias monta o seu próprio teatro ambulante e dá espectáculos nas ruas de Lisboa e, mais tarde, por todo o país. Apesar das dificuldades crescentes de sobrevivência que foi encontrando ao longo da vida, que originaram que a maioria dos bonecreiros abandonassem a sua actividade para se dedicarem a outros ofícios, Mestre António Dias manteve o seu teatro vivo até aos últimos dias da sua vida, vindo a falecer no verão de 1986.
Alguns anos antes, tinha legado todo o seu saber e arte dos “robertos” a João Paulo Cardoso, numa atitude de dádiva e humildade que permitiu que o Teatro Dom Roberto não se perdesse para sempre da memória dos portugueses.
BIBLIOGRAFIA
“ História do Teatro Português”,
Luís Francisco Rebelo, Lisboa, 1968.
“História do Theatro Portuguez”,
Teófilo Braga, Porto, 1871.
“Teatro de Outros Tempos”,
Gustavo de Matos Sequeira, Lisboa, 1933.
“Feiras e Outros Divertimentos Populares de Lisboa”,
Mário Costa, Lisboa, 1950.
“A Arte Popular em Portugal”,
Guilherme Felgueiras.
“Lisboa dos Nossos Avós”,
Júlio Dantas, Lisboa, 1962.
“Artes, Usos e Costumes Portugueses”,
Armando Lucena.
“Teatro Popular Português”,
Azinhal Abelho, Braga, 1973.
*As obras referidas, embora genéricas, contém algumas referências ao teatro popular de fantoches. Não existem publicações exclusivamente dedicadas a este assunto.
Imagens*
Apresentação do Teatro Dom Roberto em Serralves, por João Paulo Seara Cardoso (1956-2010) | Arquivo Marionetas do Porto