Todas as artes e em particular o teatro, tiveram ao longo dos tempos as suas dinâmicas próprias de relação conflituosa entre tradição e modernidade, em cíclicos movimentos de rutura do pensamento artístico, que questionam o passado e elaboram novos conceitos adaptados aos tempos que mudam.
O Renascimento é geralmente considerado como o mais profundo e brilhante movimento de rutura do Homem com o passado, com as suas conceções do mundo e da sua representação ao nível das artes.
Curiosamente, é a época renascentista que propulsiona o verdadeiro nascimento de teatro de marionetas. Não que delas não existissem notícias já desde os momos da antiga Grécia, em festividades romanas e durante a longa Idade Média onde as marionetas tiveram um papel relevante na celebração da liturgia cristã.
É a época das marionetas no interior das igrejas, quase sempre figuras religiosas animadas (são muito famosos por exemplo os anjos fazendo caprichosas coreografias aéreas na nave das igrejas) para melhor transmitir aos crentes os diversos episódios da vida de Cristo e os mistérios da fé. Este “estado de graça” terá durado vários séculos. Mas a irreverência dos bonecos, o seu espírito crítico e a sua natural tendência para a representação burlesca, o que provocaria, por certo, o riso no seio das multidões fervorosas, determinariam, mais tarde, a sua definitiva irradicação dos locais de culto, de acordo com o espírito da contra reforma.
Em Portugal este fenómeno é particularmente sentido. A permanência dos fantoches nos atos religiosos é tão forte e o seu discurso tão povoado de sermões exaltando a vida de Cristo e dos santos que eles passam a ser designados por “bonifrates” (“bonnus+frater”) e durante vários séculos as representações são ainda popularmente conhecidas por “presépios”.
Seria após o Concílio de Trento (1545) e particularmente do Sínodo de Orihuela (1600), que reiterou a “proibição de representar as ações de Cristo, as da Virgem Maria e a vida dos santos por meio de figuras móveis”, que as marionetas seriam finalmente expulsas das igrejas, da mesma forma que o novo espírito humanista expulsa as trevas do interior dos homens para iluminar os novos tempos do Renascimento.
Nascem então as pequenas companhias representando autos religiosos de delicioso sabor popular e os solitários bonecreiros que calcorreiam cidades e aldeias em busca do seu sustento.
Sou de opinião que as marionetas começam verdadeiramente a existir em contexto teatral a partir desta época como consequência dos factos históricos referidos e impulsionados pelo nascimento de uma das mais fantásticas formas de teatro popular que existiram: a Commedia dell’Arte . Também num tempo em que a Europa vivia um dos seus mais fecundos períodos teatrais: o século de ouro espanhol e o teatro isabelino.
É neste riquíssimo quadro de mudança que, talvez a partir dos finais do séc. XVI começam a chegar ao nosso país, em grande número, os artistas itinerantes estrangeiros, sobretudo franceses e italianos, que encontram publico certo e generoso nas grandes cidades. E deste modo chega também Polichinelo, um ilustre imigrante, que conquista os corações do povo com as suas picardias. Sabida que é a apetência dos portugueses para o que vem de fora não é de estranhar que o herói Polichinelo e a sua família, constituída por uma série de personagens tipificados e socialmente representativos, bem ao jeito de Gil Vicente, se tenha fácilmente estabelecido, como acontecera já, aliás, em grande parte do território europeu. Por outro lado, o carácter português tende a apropriar-se dos estrangeirismos. Esta simbiose de representações teatrais vindas do exterior com as já existentes terá resultado num processo de culturização, fenómeno comum na história da cultura portuguesa, que origina o aparecimento de um genuíno teatro popular português e mais tarde de um novo herói popular: Dom Roberto.
Por toda a Europa o teatro de marionetas é um teatro do povo próximo dos seus anseios, apresentado nas ruas e nas feiras, não raras vezes um teatro de cariz fortemente político, uma tribuna para criticar os poderosos, um espaço de catarse popular. E assim será durante muito tempo.
Apesar de viver essencialmente do improviso e do esquema dos canevas herdados da Comédia, vários autores famosos escrevem as suas peças para marionetas o que faz com que as representações também se façam dentro das salas de teatro e ganhem por vezes um carácter mais erudito. Em Portugal, tal acontece pela mão de um dos nossos maiores autores, António José da Silva, o Judeu, uma pérola no panorama da pobre dramaturgia portuguesa.
As peças, aliás operetas, representadas pelas suas marionetas no Teatro do Bairro Alto, evidenciam-se pela graça, pela perfeição dramatúrgica, pelo amor a um teatro de duplos humanos que representavam subtilmente, através das suas palavras e ações em corpos de madeira e cortiça, a crueldade e as injustiças de uma sociedade vítima do terror religioso.
E ainda no contexto da tradição portuguesa não podia deixar obviamente de referir os “Bonecos de Santo Aleixo”, um magnífico e único exemplar, no contexto europeu, de teatro de características rurais que felizmente, como sabemos, está muito bem estudado e preservado.
MODERNIDADE
Refletindo acerca da modernidade do Teatro de Marionetas gostaria de começar por referir três textos que se viriam a tornar incontornáveis e sagrados para as tentativas de teorização e renovação de uma forma teatral que, em minha opinião, permaneceu demasiado tempo encerrada num gheto e sufocada pelo peso da tradição. É sintomático que todos eles, de uma forma ou de outra, reflitam sobre as possibilidades, diria mesmo, vantagens, do teatro de marionetas, em relação às convenções da cena teatral naturalista.
“Sobre o Teatro de Marionetas”, escrito por Kleist em 1805, é um belíssimo texto que colocando em confronto o bailarino e a marioneta pretende afirmar a supremacia desta pelo facto do seu movimento não estar sujeito às leis da gravidade, induzindo uma “poética do voo”, e se fascina com o gesto simples, preciso e desafetado da marioneta, imune à emoção.
Cem anos mais tarde Edward Gordon Craig desenvolveria em “Sobre a Arte do Teatro” o conceito de ator super-marioneta, uma ideia chave do teatro contemporâneo que, rejeitando as convenções naturalistas, considera que ”o homem não é mais o melhor suporte para expressar o pensamento do homem” e afirma que a representação teatral deve instaurar um “artificialismo consciente”.
Finalmente, refiro “O Homem e a Figura de Arte”, manifesto para um novo teatro, no qual Oskar Shlemmer, no espírito revolucionário da Bahaus, propõe caminhos para um teatro não figurativo, formal, numa perspetiva pictórica de um puro jogo de formas e de cores no espaço, acentuando a plasticidade do intérprete, considerando-o quase uma escultura, como no comovente Ballet Triádico.
Considero contidas nestes textos as ideias base que induzem a reflexão, os conceitos e a prática do teatro de marionetas contemporâneo. E deste modo somos, inevitávelmente, conduzidos ao cerne da questão que alimentou as ideias de todos os grandes pensadores do teatro do século passado: a questão da estética da representação, determinada pela forma pela qual o ator e as convenções da cena se aproximam mais ou menos da realidade que se pretende representar. Ou se quiserem, de uma forma simplificada, qual o grau de naturalismo, entendendo-se este pela distância que separa o conceito simplista de “apresentação” da vida do conceito elaborado de “representação” da vida. Ou ainda, de como se resolve o grande paradoxo do teatro, talvez também o seu maior fascínio, que será sempre a inevitabilidade de representar o homem através do próprio homem. Quando sabemos que o ator e o seu corpo permanecem como material essencial da representação, com as suas naturais limitações e evidenciando uma falta de distanciamento relativamente à realidade que se propõe representar, ele próprio. E a questão fundamental que alimenta as diversas conceções teatrais é a de encontrar equivalências que tornem a representação credível, permitindo superar os constrangimentos funcionais do ator e a sua dupla condição de material de representação e ser representado.
Como se sabe, todas as expressões teatrais ancestrais encontraram formas de codificação da representação que permitiram resolver o problema, pelo recurso a uma noção de corpo extra quotidiano, fora da realidade, portador de uma dimensão quase transcendente: no ocidente, saliento o teatro grego e a Commedia dell’Arte, recorrendo à máscara e à dilatação da voz e do corpo do ator, no oriente, entre outros, o teatro do Bali, o Katakali indiano, o Kabuki japonês que instauram um sistema de códigos corporais; ou ainda pelo recurso a formas de teatro indireto, nas quais existe um mediador da relação teatral, exigência de uma representação sacralizada, propiciatória, dirigida à atenção de um público divino: as marionetas e as sombras, de que existem diversas e riquíssimas expressões nos países do sudoeste asiático.
E é precisamente quando se verifica o encontro com tradições asiáticas, nos meados do séc. XX, na Europa, nomeadamente com o Teatro Bunraku japonês, que se vai operar uma transformação radical nas conceções tradicionalistas determinando uma nova forma de encarar o processo de representação com marionetas: falo da questão do ator ser visível aos olhos do público, aquilo que vulgarmente chamamos manipulação à vista. Conscientes desta nova possibilidade os criadores veem-se libertos de um modelo de representação que tentara, até aí, esconder o intérprete para, dessa forma, conseguir criar no espectador a ilusão de vida própria da marioneta. A “mágica”.
Nessa altura e, após tantos séculos de tímida evolução marcada por um constrangimento concetual, o Teatro de Marionetas abre-se verdadeiramente à modernidade. O espaço teatral, confinado a um dispositivo funcional para esconder o ator e exibir a marioneta evolui para a cena inteira. O mistério da vida das marionetas é revelado ao espectador. E são lançadas questões novas e muito complexas ao nível da semiologia teatral.
Particularmente Brecht e Sartre refletem longamente após terem visto o teatro Bunraku. O primeiro interessa-se pelo efeito de distanciamento provocado pela presença simultânea e autónoma dos quatro intervenientes na representação: os atores/manipuladores, as marionetas, o narrador/interprete do texto (joruri) e o músico (shamisen), pela estrutura narrativa de tipo épico e sobretudo pela situação dos interpretes serem ao mesmo tempo espectadores da própria representação, o que lhe proporciona um fantástico material de reflexão para uma questão básica do seu pensamento; Sartre estuda a relação no espaço e no tempo entre estes diversos signos teatrais e fascina-se com a riqueza da dialética que se estabelece, no momento da representação, entre o movimento que é dado à marioneta pelo manipulador e a voz que lhe é emprestada pelo narrador situado no canto direito da cena, em narrativas, diálogos e canções.
Analisando a prática e tendências do teatro de marionetas atual, diria que o teatro de marionetas procura à luz da contemporaneidade, uma autonomia estética, uma linguagem própria, numa época em que o teatro em geral vive um período de grande indefinição e parece perdido na busca de um modelo teatral identitário. Perdendo, obviamente, no confronto com os audiovisuais, o cinema e a televisão, linguagens para-teatrais que desenvolveram os seus próprios modelos de representação ideais, naturalistas.
O teatro, por seu lado, teria de encontrar novos códigos de evocação de um novo mundo.
O teatro de marionetas é, por natureza, um teatro imagético, com uma dimensão poética, não naturalista, instaurando nas convenções da cena o tal “artificialismo consciente”. Por definição, está na fronteira de diversos universos artísticos. E por isso revela uma capacidade, como nenhuma outra forma dramática, de incorporar e transformar, com poderosa eficácia, as novas linguagens cénicas, os novos modelos visuais, os novos sentires de um mundo pós-moderno.
A minha experiência e a minha prática dos últimos anos, estão ligadas a diversas obcessões que se relacionam com as questões que anteriormente exprimi. Desde logo, a procura de outras matrizes de interpretação para o ator/performer, por oposição às convenções da cena naturalista. Isto implica, em minha opinião, uma pesquisa formal da linguagem teatral, não no sentido de criar “belas imagens”, mas essencialmente na possibilidade de extrair conteúdos emocionais do corpo enquanto metáfora, imagem não figurativa, abstrata, formal.
Acredito na construção de uma poética da ação, que questiona a função do interprete como portador da dimensão puramente psicológica do texto, puramente semântica, mas que considera as palavras como elemento do universo de signos da representação, valorizando a sua dimensão poética e imagética. Meyerhold, cujo pensamento é hoje de uma grande atualidade, afirmava que “o ator contemporâneo transformou-se num declamador intelectual” e acrescentava: “Construir o edifício teatral sobre uma base psicológica equivale a construir uma casa sobre areia: inevitavelmente se desmoronará”.
As novas tendências do teatro de marionetas, cruzadas pelos novos imaginários da criação artística, ao nível do teatro, da dança, das artes plásticas, da música e das imagens, poderão contribuir para que a arte teatral se liberte do seu limbo arcaico, para que seja sensível a um mundo de novos sentires e realidades, recusando modelos convencionais não permeáveis ao tempo, escloresados e imediatistas e se lance na procura, com riscos, é certo, de um novo teatro no qual os espectadores possam encontrar uma real ressonância com as suas vidas.
João Paulo Seara Cardoso
Comunicação apresentada ao Congresso de Teatro realizado no Teatro de Vila Real em abril de 2004