Por marionetas portuguesas
Tourada em Dublin para inglês aplaudir
Não é todos os dias que se vê uma tourada em Dublin. No último domingo, no entanto, ela lá esteve, no St. Stephens Green, no centro da capital irlandesa, não com touros verdadeiros, mas em miniatura, num pequeno palco envolto em pano e voz de falsete, assim como o toureiro e os campinos. À sua volta, a corrida à portuguesa era seguida com grande atenção, acompanhada por gargalhadas de centenas de crianças, e dos pais também. As palavras, em português, não eram entendidas, mas a ação era suficiente. O ambiente de grande animação recortava-se no arvoredo do parque, com um sol afável.
O espetáculo foi levado por João Paulo Cardoso, com o seu Teatro Dom Roberto. Fora convidado a participar nos festejos de Dublin, para assinalar a presidência irlandesa da Comunidade Europeia. João Paulo Cardoso contou para esta deslocação com o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Secretaria de Estado da Cultura.
No programa, além da tourada, também se viram as histórias da princesa aprisionada no castelo encantado, a cena de Dom Roberto no barbeiro e os três namorados de Rosa. No fim de mais um espetáculo, João Paulo Cardoso manifestava-se muito satisfeito com a reação do público irlandês, especialmente das crianças. “Isto é muito bonito. Em Portugal gostam muito dos robertos. Os miúdos gostam e os adultos chegam a ficar com a lágrima ao canto do olho”, recordando os tempos em que também eles viam os pequenos palcos, um pouco por toda a parte. Esta forma de arte tem grandes tradições, mas, no seu formato original, parece estar a desaparecer. No entanto, indica que o teatro de marionetas está a conhecer um período de grande desenvolvimento, embora sob contornos mais atualizados. Recordou a realização de festivais em Évora e no Porto, assim como o Museu da Marioneta, em Lisboa.
Para o próximo ano, João Paulo Cardoso está convidado para levar os seus “robertos” ao festival anual de Londres, destinado a assinalar o aniversário de “Punch&Judy”. Nas boas tradições dos bonecreiros, ele meteu na mala o touro, os campinos, o barbeiro, a Rosa e os seus três namorados, a princesa, e seguiu para outro parque ou outra esquina, algures no mundo.
Fernando de Sousa
in “Diário de Notícias”, 30 de junho de 1990
…Changement de décor, au Centre Portugais, dimanche soir, où le comédien remettait ça avec “Dom Roberto”. Une sorte de Guignol, très réussi, enlevé et pétillant. Le théâtre le plus rapide du monde: Roberto, marionnette traditionnelle, se démène avec les crocodiles pour délivrer son amoureuse de princesse et devient toréador pour combattre un taureau sympathique aux yeux jaunes. Les enfants hurlent de rire. Les adultes aussi. Et de nouveaux ces cris stridents, si bien rendus, onomatopées dans lesquelles on reconnaît ici ou là un mot en portugais. Les couleurs des robes virevoltent sur fond de velours rouge. Roberto est vainqueur. Les enfants sont contents. Les adultes aussi.
fk
in “L’Express”, 1989
Robertos de sonho na Fonte das Virtudes
O Passeio das Virtudes e toda a arquitetura envolvente do século XVIII foram ontem ponto de paragem do Clube dos Amigos da Erva Daninha.
…
E os Robertos, que sonho!
O TAI, pela voz e gestos de João Paulo Seara Cardoso, um verdadeiro artista, representou algumas cenas dos robertos, um sonho dos tempos idos, que João Paulo soube trazer aos nossos dias, com uma verdadeira dose de saudade, a lembrar os meninos que todos fomos, as feiras e romarias, as tardes de domingo em qualquer jardim da cidade.
O barbeiro fez rir grandes e pequenos, no arraial de pancadaria que deu ao cliente enquanto lhe colocava a toalha para o escanhoamento. Depois veio a tourada, com um touro corpulento, de “franca e generosa entrega”, como dizem os entendidos nas corridas. Porém, o toureiro, “ágil no toque da muleta”, acaba por fazer da corrida uma manhã de touros de morte! Não faltaram os campinos, no seu trajo garrido.
Os robertos, que têm alguns séculos de existência, estão a desaparecer e se jovens como João Paulo não pegarem numa tradição cultural deste género para a reavivarem, tudo pode ser, brevemente, um tempo de história!
Por isso, vivam os robertos. Abaixo os entretenimentos com tanques e metralhadoras! Deixem as crianças sonhar!
Teixeira e Castro
in “Jornal de Notícias”, 1987
Dom Roberto – passado e presente
O teatro de fantoches, com a sua simbologia própria, tem um longo percurso, que atravessa séculos. João Paulo Cardoso, de 31 anos, herdeiro das tradições dos fantocheiros, fala-nos do tema, principalmente do elo de ligação que ele representa entre os tempos do antigamente e os de hoje.
«A minha atitude perante o teatro Dom Roberto é uma atitude de etnólogo. É o mostrar traços fundamentais de uma cultura que nos precedeu, para melhor compreendermos a presente. É a atitude do etnólogo que numa aldeia de Trás-os-Montes recolhe uma máscara e a dá a conhecer no presente.»
Diante de mim, João Paulo Cardoso, de 31 anos, técnico de animação do FAOJ/Porto e, desde o ano passado, o único fantocheiro do teatro de Dom Roberto entre nós.
Porquê esta forma de expressão artística? Era a pergunta de abrir conversa, querendo João Paulo acrescentar ao já dito:
— «O teatro de Dom Roberto, embora pertença ao passado, é uma grande lição de presente. Há determinadas formas artísticas populares que são intemporais, caso do conto popular, que aborda problemas fundamentais do ser humano. O essencial é intemporal e o teatro Dom Roberto contém essas características.
«Além do mais», continua, mexendo constantemente os dedos como a estimular o pensamento, «para mim o grande paradoxo do teatro é que representa a vida sem se conseguir distanciar dela, porque o agente de representação é o ser humano. No teatro de fantoches, esse paradoxo não existe, porque o fantoche não tem vida, estamos perante um teatro de símbolos, de duplos de nós próprios, verifica-se uma passagem para algo mais profundo, para os mundos interiores.»
Matar os fantasmas
No teatro de fantoches a possibilidade de matar os fantasmas, de matar a própria morte, arrasta todo um profundo jogo de emoções, conduz a um processo catártico, na opinião do meu interlocutor, cujo fascínio por esta forma de comunicação artística se relaciona ainda com o movimento do que não vive, com o ter de dar vida à matéria inerte — «como nos jogos das crianças se dá vida a tudo o que está em volta» — e mais fascínio pela escala reduzida de trabalho, pela miniaturização que o teatro de fantoches implica: «Tudo cabe na palma da mão…»
Das motivações pessoais, passamos ao enquadramento histórico, embora sumário, desta expressão artística. Recuamos ao início do século e à existência de uma espécie de empresário, que então agrega os fantocheiros que até aí trabalhavam dispersamente. Aliás, residirá aqui uma das razões que pode explicar a denominação Dom Roberto, sabendo-se que Roberto Xavier de Matos foi um importante empresário de uma trupe que corria festas e feiras apresentando espetáculos em pavilhões desmontáveis, Outra tese, ainda a propósito da denominação Dom Roberto, estará no título de um muito divulgado folheto de teatro de cordel, datado do século XVIII, cujo nome era Roberto, O Diabo.
De uma maneira ou de outra, o teatro Dom Roberto ficou para sempre associado aos fantoches de luva — o boneco entra pela mão e pelo braço, sendo a manipulação feita com os dedos —, e aqueles que, como o escriba, já entraram na reta dos inta a caminho dos quarenta, serão dos últimos que ainda se lembrarão com certeza dos espetáculos itinerantes dados pelos fantocheiros então já fora dos pavilhões, já em atividade individual.
«Com o aparecimento das atrações elétricas, nas feiras e festas, os pavilhões sofrem uma grande quebra, e a sua maioria desaparece», elucida João Paulo Cardoso, acrescentando que a partir daí aparece o fantocheiro-solitário, atrás referido: «É como um retornar aos tempos antigos, com o manipulador no interior da sua pequena barraca, em actividade solitária, quando muito ajudado por um miúdo que durante o espetáculo lhe chegava os aparatos e no fim fazia a colecta por entre a assistência, às vezes com um macaquinho ao ombro.»
Segundo este técnico fantocheiro, os seus antecessores dividiam-se, por assim dizer, em dois grupos, os mais urbanos, que no verão faziam o litoral e no inverno Lisboa e Porto, e outros que andavam sempre pelo interior: «Aliás isto é muito parecido, como sabes, com o que se passa com o circo, até porque houve grande permuta entre artistas das duas áreas, e havia até um aspecto curioso de referir, o da existência, antes do início dos espetáculos, como chamariz do público, de ratos amestrados que se exibiam na parte superior da barraca, a mando do chicote de um boneco ‘domador’…»
Antes de entrarmos em pormenores técnicos, o ator-fantocheiro não quer deixar de referir dois nomes que considera importantes nesta história recente do teatro Dom Roberto. Nomeia então Joaquim Faustino «um dos últimos donos de um pavilhão de. fantoches» — e o mestre António Dias, «falecido no ano passado, em circunstâncias trágicas, e com quem eu aprendi tudo o que sei».
Sonoridade e ação
Estamos nos aspetos técnicos da arte, considerando João Paulo que a sonoridade e a ação são dois dos elementos fundamentais: «O fantoche, no dizer de Paul Claudel, é uma palavra que age, e nesta ação, que está para além das palavras, a sonoridade é ao mesmo tempo complemento e prolongamento; dai o cuidado na escolha de materiais sonantes, tanto para o boneco como para os aparatos, que devem ser de madeira, chapa e ferro. Mas a atenção aos efeitos sonoros não está apenas nos materiais utilizados nos bonecos e aparatos, ela passa também pela amplificação e ressonância da palavra. Aqui o segredo esta na utilização da «palheta» — constituída por duas pequenas tiras de chapa de alumínio, seguras por fita de nastro – que, dentro da boca do fantocheiro, produz aquela sonoridade tão característica do Dom Roberto.
E quanto ao repertório? Quantas e quais são as peças tradicionais?
«O repertório inspira-se na tradição europeia, que, recuando no tempo, tem as suas origens na commedia dell’arte, e ainda nos nossos textos de teatro de cordel, que eram muito utilizados nos pavilhões. Com o regresso do fantocheiro solitário houve como que uma reconversão de textos, que se tinham de adaptar ao facto de só haver um manipulador. As peças que entretanto vieram até nós, e que eu represento, são O Barbeiro, A Tourada, O Castelo dos Fantasmas, A Rosa e os Três Namorados, e ainda uma em que estou a trabalhar neste momento, O Marquês de Pombal e os Jesuítas que, nitidamente, faz a ligação com a tradição do século XVlll.»
Entretanto, e como já se disse, João Paulo Cardoso é, nos nossos dias, o único executante do teatro Dom Roberto, facto que lhe tem valido várias tournées por esse país fora, como há semanas atrás em Viana do Castelo, e no decorrer do XI Encontro Nacional de Teatro de Fantoches, onde mais uma vez nos encontrámos.
João de Melo Alvim
in “Diário de Notícias”, 1987
… I had the pleasure of performing a number of shows together with João Paulo Cardoso who has single-handedly rescued the Portuguese ‘Dom Roberto’ tradition from obscurity. Here is a genuinely funny ‘puppetesque’ show that uses minimal staging and paraphernalia, and like the best Punch shows relies on a visual style of communication that is not at all like a ‘theatre of little people’, but is unashamedly about a world of wooden-headed comic characters. What is extraordinary, besides the speed and precision of the carton-like activities of the puppets, is that all the voices are spoken through the swizzle! João Paulo has complete command over the technique and I’ve never heard better in England for range, clarity and variety of sound. I love the burlesque of the routine at the barber’s shop, involving an enormous cut-throat razor, also the classic bullfight scene with a bull which is both menacing and completely absurd.
As my favourite Spanish shows, here was a puppet performance straight from the heart and quite unpretentious. Please will someone bring Sinhor Cardoso to England, maybe for a Covent Garden festival.
Martin Bridle
in “Animations”, 1987
… El sábado por la noche el publico se divirtió de lo lindo en la Casa de los Picos. Y todo fue fruto de una improvisación, como en las mejores fiestas. Aunque en el programa estaba anunciada solo la actuación de “La Andariega” cuyo fundador Javier Villafañe está considerado como maestro de titiriteros, su presencia fue nada más que testimonial. João Paulo Cardoso acababa de llegar de Portugal com Dom Roberto de la mano y allí mismo ofrecieron el prólogo de lo que fue su actuación anoche. Se nota en este festival, al menos hasta la fecha, el peso de la tradición, de la continuidade n las técnicas y en la concepción de espectáculos. Cardos lleva essa tradición com una enorme dignidad y aunque para los habituales su trabajo ya no es una sorpresa, resulta siempre refrescante. Maestro del garrotazo, Dom Roberto se mueve com una increible rapidez de un lado a outro del teatro. Si el ritmo que imprime el marionetista hace a veces difícil de explicar – João Paulo es el único manipulador – la presencia de más de un personaje, lo más llamativo de su espectáculo es sin duda el sonido. Conseguido a través de una lengueta que amplifica la voz del titiritero produce entre onomatopeyas y tonadillas los efectos más cómicos.
A.T.
in “El Adelantado de Segóvia”, 1986
The one in the oldest tradition was João Paulo Cardoso’s Teatro Dom Roberto – a Portuguese interpretation of a style originally developed in the Italian Renaissance, the same that gave rise in England to Punch and Judy. Cardoso learned this glove-puppetry from an old man he met by chance three years ago, and who has since died, leaving Cardoso the only practitioner of this traditional genre. In one of the stories Cardoso performs the hero, Dom Roberto, saves a princess from terrible monsters. In another, he goes to the barber, doesn’t like the price, batters the barber and then, when the Death comes to take the victim and wants the victor as well, Dom Roberto kills Death too. All in a day’s work.
A very typically Portuguese story, according to Cardoso, is the one in which the servant Rosa orchestrates the visits of three rival suitors, hiding two of them in closets as necessary. When the master and mistress of the house call the police, the suitors attack the gendarme. In the end, Rosa chooses the suitor who has come back from Brazil and is rich. The fact that the Brazilian is black in this case represents a typical confusion among Portuguese villagers, Cardoso explains. They knew people who went “abroad” but never distinguished between the colonies in Africa and Brazil. They just knew that the travellers came back rich and were good husband material.
The violence is of a type the 20th century recognizes in slapstick and cartoons: much bomping over the head, clacking and bowdlerized cursing. Dom Roberto is the “spirit of the community”, Cardoso says. “By killing the puppet, he kills the oppressive institutions.”
in “The Jerusalem Post”, 1986