Quando, em 1843, J. O. Halliwell publicou pela primeira vez a história de “Os Três Porquinhos”, estaria longe de imaginar as voltas que o mundo iria dar.
O certo é que os três porquinhos e o malvado lobo embalaram na vertigem do tempo e chegaram até nós, habitantes da aldeia global.
Onde estão, como sobrevivem, como se adaptaram os nossos porcos metafóricos aos tempos pós-modernistas?
Bom, a moral se verá adiante e, quanto à história, o que se sabe é que os dois porquinhos mais novos foram comidos porque eram uns artistas preguiçosos que só pensavam em cantar e dançar e nunca mais se ouviu falar deles. “A arte é inútil”, terá vociferado o Lobo Mau antes de os devorar.
Quanto ao porco mais velho, aprendendo a comportar-se segundo o elementar princípio da realidade, salvou-se de ser comido e ainda se preparava para comer o lobo, cozido no caldeirão de água fervente. Mais uma vez, demonstrando um notável sentido de oportunismo, o lobo seduziu-o sexualmente, invocando a teoria psicanalítica segundo a qual o porquinho mais velho não teria passado com êxito a fase anal. Não se sabe se foram felizes.
À luz da mesma teoria, foi dado um importante passo na compreensão da personalidade do Lobo Mau, descrito pelos psicanalistas como o representante das “forças associais, selvagens e devoradoras contra as quais temos de aprender a defender-nos” (o que pode constituir um rude golpe na ilusão daqueles que pensavam que ele era apenas um lobo). Ora, aí encontramos uma óbvia verdade contemporânea. Por isso se diz muitas vezes: cuidado com o Lobo Mau!
E nesta história interminável de grandes e pequenos, de fortes e fracos, de predadores e de vítimas, ficam sempre sem resposta as questões fundamentais: quem come quem, quem é comido?
No que respeita à moral da história, isso não é o mais importante. O importante não é quem come quem, o importante mesmo é não nos deixarmos ser comidos.
Porque a vida é bela e o céu é azul.
encenação e cenografia
João Paulo Seara Cardoso
texto
Stefan Harrel, Lydia Lunch, Jello Biafra, J. O. Halliwell
marionetas
Jorge Ramalho
pintura marionetas
Emilia Sousa
figurinos
Manuela Pedro
sonoplastia
Miguel Reis e Luís Aly
vídeo
Yves Godrèche
desenho de Luz
António Real
produção
Mário Moutinho
interpretação
Marta Nunes; Rui Oliveira; Sérgio Rolo
participação especial
John Rambo
operação de luz e som
Filipe Azevedo
operação de vídeo e legendas
Hugo Valter Moutinho
secretária de produção
Sofia Carvalho
assistente de produção
Paula Anabela Silva
tradução
Isabel Leite da Silva
construção cenografia
Américo Castanheira, Tudo Faço, Atelier BBW
técnicos de construção
Abílio Silva e Vitor Silva
confeção de figurinos
Branca Elíseo
pirotecnia
Jorge Duarte
fotografia de cena
Henrique Delgado
ilustração
Júlio Vanzeler
agradecimentos
Matéria Prima, Paulo Eduardo Carvalho, Mafalda de Barros
espaço cénico
Dimensões
Boca de cena: 8,00 m;
Profundidade: 5,00 m;
Altura: 3,50 m
Obscuridade total
luz
Equipamento da companhia
30 micro-projetores 12V/75W,
4 projetores PC 650W,
mesa de luz, racks,
cabos de ligaçãotripés.
Equipamento necessário
Barra para suspensão de projetores e projetor de vídeo localizada a 3,00m de altura e 2,00m de distância do limite de cena;
7 projetores PC 650W;
1 Projetor recorte 650/1000W;
Ligação trifásica 16A
som
Equipamento da companhia
leitor CD
2 microfones emissores lapela
Equipamento necessário
1 microfone emissor lapela
1 microfone sem fio
Mesa de mistura 12 canais
Amplificação da sala
Som de palco
vídeo
Equipamento da companhia
projetor de vídeo LCD e leitor S-VHS Hi-Fi.
montagem
10 horas
desmontagem
3 horas
staff necessário
1 técnico de som
1 técnico de luz
2 técnicos de palco
apoio
Camarim para 3 pessoas.
número de atores: 3
número de técnicos: 2
nota: este espetáculo foi concebido para ser apresentado em Café-Teatro.
duração do espetáculo: 45 minutos
classificação etária: maiores de 16
menções obrigatórias em todo o material promocional do espetáculo:
Estrutura financiada por SEC/DGArtes (com inserção de logótipos)
Dos porcos metafóricos
Marionetas do Porto estreou “Os três porquinhos” no Rivoli
Acabados de aterrar no Porto, depois de, em Praga, no “World Festival of Puppet Art”, terem apresentado “Nada ou o Silêncio de Beckett”, premiado nas categorias de melhor performance e melhor encenação (para João Paulo Seara Cardoso), os elementos do Teatro de Marionetas do Porto, apresentam ainda hoje e até 16 de julho, sempre às 24 horas, no café-concerto do Rivoli teatro municipal, no Porto, “Os Três Porquinhos”. Numa espécie de aldeia global, dentro de apartamento-compartimentados, os atores, com uma linha dramatúrgica fracionada que culmina num espaço aberto à interpretação de cada fruidor, utilizam meios como o vídeo, o teatro, a música e a manipulação de marionetas para realizarem um espetáculo transversal que funciona como um antídoto à manifesta postura conservadora da maioria dos nossos grupos de teatro.
Buscando nas várias componentes artísticas a possibilidade de produzirem algo de inusitado, eclético e abrangente, o Teatro de Marionetas do Porto consegue transmitir uma mensagem cuja moral da história passa pela ideia de que não interessa quem come quem, pois o que importa mesmo é não ser comido. Os discursos em inglês, com legendas, (proclamados por Marta Nunes, numa postura de quem não precisa ser simpática nem emotivamente convincente para agradar, por Ségio Rolo, um poço de energia, vibração e talento, e por Rui Oliveira, pleno de profissionalismo e carisma), possuem uma carga de sonoridade e sátira que provoca frequentes risos na plateia. As sociedades massificadas, especialmente a americana, são criticadas com uma espécie de sorriso amarelo que dá vida ao corpo e às próprias marionetas, elas mesmas confundidas com as próprias personagens.
Alucinação citadina
Entre a narrativa principal e os estilhaços do imaginário dos porquinhos, surge um ambiente de alucinação citadina onde os animais servem para retratar os medos, as angústias e as paranoias dos humanos. Se um lobo mau vocifera, enquanto degusta um rosado suíno, que guincha mas adora sem relutância, numa quase auto-destruição, que a arte é inútil, também os espectadores são envolvidos numa teia espartilhada de processos onde o humor acaba por provocar uma confusão entre predadores e vítimas.
Mas porque a vida é bela e o céu é azul, este espetáculo, baseado no texto secular de Halliwell e acrescentos de figuras como Jello Biafra, cuja delirante e inteligente encenação pretence a João Paulo Seara Cardoso, parte rumo a um futuro artístico que cruza várias formas de expressão e que, aponta o caminho para a frequente monotonia que contamina muitos dos nossos artistas.
José Manuel Simões
in “Jornal de Notícias”, 25 de junho de 2000
Os três porquinhos
Comer ou ser comido
Desde 1943, data da sua primeira edição em livro, que a intriga do conto “Os Três Porquinhos”, de J.O. Halliwell, passou a integrar o imaginário de crianças de todo o mundo, com aumento significativo de popularidade neste século a partir da recriação de Walt Disney. “Onde estão, como sobrevivem, como se adaptaram os nossos porcos metafóricos aos tempos pós-modernistas?”, eis a questão colocada por Stephan Harrel, autor desta versão pouco ortodoxa agora posta em cena pelo Teatro de Marionetas do Porto, numa imaginativa encenação (e cenografia) de João Paulo Seara Cardoso, que utiliza ainda textos de Lydia Lunch e Jello Biafra.
O espetáculo é composto por uma série de quadros, numa sequência estrutural própria do teatro musical. Depois de uma cómica abertura coregrafada com os três atores polivalentes – Marta Nunes, Rui Oliveira e Sérgio Rolo -, o nível de transgressão vai aumentando em flecha, com um texto de Lydia Lunch.
Com um curioso trabalho de sonoplastia de Miguel Reis e Luís Aly, o espetáculo faz alternar trabalho de ator, números musicais, dança, vídeo e marionetas, numa convergência notável de linguagens cénicas em fluida interação, com momentos delirantes como o da aparição do próprio John Rambo, em missão de purificação pelo tiroteio. Absolutamente hilariante é a cena “romântica” do porquinho sobrevivente com o lobo.
Mas, além das interpretações mais ou menos eróticas sugeridas por uma segunda leitura do conto, e que por aqui vão passando com frequência e graça, há outro nível de leitura metafórica que se põe em prática (e ao qual também não são estranhos os textos de Lydia Lunch e Jello Biafra), que é o da denúncia do imperalismo norte-americano e da sua hipócrita formação da noção de “vida em sociedade”. Porque como refere ainda Stephan Harrel, “no que respeita à moral da história, isso não é o mais importante. O importante não é quem come quem, o importante mesmo é não nos deixarmos ser comidos. Porque a vida é bela e o céu é azul”.
R.A.
in “Blitz”, 11 de julho de 2000