O Nada e o Silêncio em Beckett

Qualquer encenador gostará de ter Beckett no seu curriculum. Mas sempre se debaterá com a questão da (im)possibilidade de uma encenação criativa. O próprio Beckett fez questão de criar arquétipos de encenação das suas peças, nomeadamente das da primeira fase, acompanhando intensamente o processo de montagem e dando instruções precisas quanto à forma de interpretação dos personagens, ao espaço cénico, enfim, a tudo… até ao ínfimo pormenor. É da história o conflito com Roger Blin, que sofreu estóicamente essa interferência do escritor no processo criativo, o que deu origem a algumas tensões ultrapassadas pela mútua admiração

Na verdade, o que fazer para além das didascálias, que de tão densas tornam a leitura fluida das peças tarefa quase impossível? O que fazer para além da maníaca precisão das indicações de gestos, de atitudes, de comportamentos, de pausas; o que fazer da árvore, que não pode ser outra senão aquela, despida e triste, o que fazer de uma boca que fala no escuro, de cenários minimais onde o ínfimo pormenor é essencial para a ação, de um montículo de terra-prisão plantado num deserto árido, da intensidade e dos tempos exatos de subida e descida das luzes, dos passos cadenciados mais precisos do que um metrónomo que medem a cadência das palavras? A simples ideia de mudar estes arquétipos de Beckett é, de certo modo, aterradora, para um encenador.

Em 1999, quando resolvi montar um espetáculo de Beckett, tinha como ideia de partida fazer uma dramaturgia a partir das peças que me pareciam mais adequadas a um teatro de marionetas com atores, no qual os personagens, os atores seus duplos e as marionetas, duplos por sua vez de uns e de outros, se articulam num conceito que me parece adequado à lógica beckettiana, consignada na fórmula de Rimbaud “Je est un autre”. Os textos que pensava utilizar nesse mix Beckett, eram sobretudo os clássicos da primeira fase, os mais clownescos: À Espera de Godot, Fim de Parte, Ato sem Palavras I e Dias Felizes. O que eu sinto que une estes textos é a espera. E o que nos une a estes textos é sermos portugueses, sebastiânicos. Esperamos porque acreditamos, como estes personagens, que a espera nos trará a felicidade. Esperamos como em Godot, Vladimir e Estragon esperam por alguém, esperamos como em Fim de Parte se espera que tudo acabe, como em Ato sem Palavras o homem espera pelo apito (em gíria do futebol chama-se o apito final)…e como em Dias Felizes Winnie espera pelo fim do dia.

O espetáculo acabou por não ser aquilo que eu tinha pensado porque, seguindo os habituais preceitos relativamente à questão dos direitos de autor, o representante legal dos direitos da obra de Beckett respondeu que apenas o Ato sem Palavras I poderia ser encenado com marionetas, não autorizando a utilização dos outros textos.

Esta foi a minha primeira zanga com o senhor Beckett. Mas estou em crer que esse tal senhor inglês, fiel guardião dos direitos, percebia muito pouco do assunto. Desconfio até que a sua única referência relativamente ao teatro de marionetas fosse o Punch and Judy, visto na infância em algum jardim londrino. Naturalmente que tenho as minhas dúvidas e os meus receios. E o meu grande respeito pelos cânones becketianos a quem alguém já chamou de protocolo Beckett, ou seja, um conjunto de regras que não se rompem de ânimo leve. Mas tenho também uma enorme convicção de que as marionetas, tais como eu as entendo, são mediums extraordinários para darem corpo e sentido à “melancolia cómica e ao desespero burlesco” (cito Beckett) dos seus personagens/clochards.

Porque os personagens de Beckett, seres errantes que não falam, antes escutam as suas próprias vozes, que não se sabe de onde veem, para onde vão, parecem por isso falar em play-back, ou melhor, em play-beckett, porque o seu corpo parece não coincidir com a sua voz. São vozes que mergulham no vazio do personagem e o atravessam. Ora essa decallage dialética é um dos princípios fascinantes da relação do ator com a marioneta, num sistema de manipulação à vista. Há por vezes uma sensação de que o ator, em Beckett, está num estado próximo do paroxismo à espera que o personagem lhe sopre ao ouvido, a cada instante, a sua fala. Em Eleutéria, a primeira peça de teatro escrita por Beckett, o ponto exaltado irrompe da sua caixa do proscénio e diz aos atores que não estão a respeitar as palavras que ele lhes transmite. O ponto, aqui, não é mais do que o autor travestido de personagem, que sopra as palavras ao ator, ou, tomando a minha perspetiva, o ator que ouve as palavras do personagem e as sopra ao seu agente em cena, a marioneta.

Um dia perguntaram a Beckett se os seus personagens eram condenados à morte. Ele respondeu: “Não, são condenados à vida”. Tais como as marionetas, os personagens de Beckett têm vida intermitente. Não existem… porque são poderosas metáforas da existência. Só vivem na cena.

Voltando ao meu problema com o guardião de Beckett, um dia encontrei uma frase do autor que me serviu de inspiração para a construção do espetáculo constituindo, por outro lado, uma boa forma de contornar a proibição decretada.

“Toda a palavra é como uma mácula desnecessária no silêncio e no nada”

Dela retive o silêncio e o nada que viriam a inspirar o título da criação: Nada ou o Silêncio de Beckett, propondo então aos atores e restante equipa criativa abdicarmos do texto formal das peças e partirmos para a construção de um objeto eminentemente visual contaminado pelas fortes impressões que nos causam o universo de Beckett.

A música, elemento fundamental desta opção, seguiria o mesmo princípio: uma construção musical, numa aceção contemporânea (tratava-se de música eletrónica), que incorporasse o conceito de silêncio e algumas obcessões sonoras de Beckett: os sons recorrentes realistas viriam a ser relógios, metrónomos, campainhas e apitos.

Buscando inspiração para a plástica do espetáculo e para o conceito de iluminação, deparei-me com um pintor que Beckett muito admirava, Bram Van Velde. Conceptualmente eram da mesma família, as telas de Van Velde aproximando-se de uma ideia de não-pintura, o teatro de Beckett, chamado de teatro do absurdo sendo, no fundo, mais um não-teatro. Ambos os artistas expressavam, de forma sublime, a angústia existencial do pós-guerra, a não-possibilidade de representação. Porém, essa coincidência não me era útil.

A verdadeira revelação encontrei-a na pintura de Caravaggio. É uma pintura de belos e violentos claros e escuros, de figuras humanas estranhamente pálidas e desemocionadas. Como o teatro de Beckett, faz-nos deambular por mundos escuros para desfrutarmos plenamente a claridade. Nas grandes telas barrocas de Caravaggio os nossos olhos vagueiam detendo-se, ora nas zonas escuras, que nos conferem à alma uma sensação de intranquilidade, ora nas grandes manchas de uma luz quase teatral, que nos transmitem um brutal apaziguamento. O teatro de Bekett, para mim, é exatamente isso.

Também utilizei alguns excertos de texto porque me pareceu, a certa altura, que o texto poderia constituir um precioso elemento estruturante dramatúrgico. Três blocos de texto, extraídos de Sobressaltos, resultaram na divisão do espetáculo em quatro partes. As palavras que escolhi eram de uma grande e crua beleza.

Pedi à atriz que as dissesse de olhos fechados. Para que não fossem “uma mácula desnecessária no silêncio e no nada”, pedi-lhe que servisse as palavras em bandeja de prata.

Beckett Byke

Vou agora falar de bicicletas.

Dear bicycle, I shall not call you bike, you were green, like so many of your generation. I don’t know why. It is a pleasure to meet you again. (Molloy)

Como sabem, Beckett tinha um gosto especial por bicicletas, uma paixão. Foi na sua bicicleta que Beckett percorreu, na juventude, as paisagens que se estendiam junto à sua casa, em Foxrock, nos subúrbios de Dublin, paisagens que ele tanto amava e que aparecem frequentemente referidas nos seus escritos. No romance Mercier e Camier diz:

“The bicycle is a great good. But it can turn nasty, if ill employed”

Esta afirmação profética seria concretizada onze anos mais tarde, em Fim de Parte: Nell e Nagg, os dois personagens que sobrevivem estropiados dentro de dois bidons, foram vítimas de um acidente de bicicleta. Humor negro de Beckett…

No mundo obscuro e pouco esperançoso de Beckett, a bicicleta pode também aparecer como um raio de esperança e até de amor e sedução. Numa das histórias de More Pricks than Kicks, Belacqua, o personagem principal, passeia com Winnie, a bela mulher que o tenta seduzir. Mas a tentativa de Winnie acaba frustrada, quando Belacqua- “que não conseguia resistir a uma bicicleta”- avista uma, abandonada na relva. Eis a descrição:

“It was a fine light machine, with red tyres and wooden rims. The machine was a treat to ride…”

A bela Winnie foi assim trocada por uma bicicleta, objeto de desejo.

Às vezes a bicicleta é geradora de momentos de felicidade, raros no universo beckettiano, como quando Moran e o seu filho, em Molloy, vão monte abaixo, de bicicleta:

“Happily it was downhill. Happily I had mended my hat, or the wind would have blown it away. Happily the weather was fine and I no longer alone. Happily, happily”

Após esta fase inicial da sua vida, porventura menos pessimista, a bicicleta haveria de ser banida da narrativa, até porque os seus personagens perderiam progressivamente a capacidade de se moverem. As bicicletas transformar-se-iam em cadeiras de rodas embora Hamm lamente, ironicamente, que a sua não tenha rodas de bicicleta.

Como Nada ou o Silêncio de Beckett constituía, também, de um ponto de vista muito pessoal, uma homenagem àquele que considero o maior autor de teatro do séc. XX e, como eu também tenho um fascínio especial por bicicletas, que uso muitas vezes como objetos cénicos, o espetáculo acaba com um passeio de bicicleta do senhor Beckett.

É uma tarde de primavera. Acabou de chover. Beckett entra em cena a pedalar e diverte-se a fazer gincana por entre as poças de água. Olha para os raios de sol que passam através das nuvens, observa as folhas da árvore, agora mais verdes. Toca a campainha da bicicleta e as luzes apagam.

João Paulo Seara Cardoso

Comunicação apresentada ao Colóquio Internacional “Plural Beckett Pluriel, A Centenary Celebration”realizado na Faculdade de Letras do Porto, em 23 e 24 de novembro de 2006