Magritte’s canvases are full of elements with a great seductive power. Those objects, those colours, those bodies, those enigmas, those beautiful games of concealment are proposed to the spectator, confronting him with the mystery of people and things, of what is visible and what is dreamt.
Plunged in the universe of the surrealistic poetics, this is an attempt of making “the thoughts visible” through theatre.
Today it’s Sunday
There is a rain of men wearing a hat in front of the houses
Screams of wounded bird are heard in the woods
Lovers kiss through the sheet
The table is set over the apple
The secret life is a sphere suspended in the corner of the house
The dead woman over the bed
The sound of the sea
It’s morning
An orange light illuminates the windows of the house
The horse runs above the green car
A perfume of red roses in the bedroom
An egg in flames
The woman with golden hair is an ignorant fairy
Wind
The motionless trees
The leaves that are trees
September
( from “O Princípio do Prazer”)
João Paulo Seara Cardoso
marionettes and costumes
Júlio Vanzeler
music
Roberto Neulichedl
text
Paulo Chaim
lyrics
Regina Guimarães
lighting design
Jorge Costa
marionette painting
Emília Sousa
cast
Edgard Fernandes, Mariana Portugal, Marta Nunes, Sérgio Rolo, Shirley Resende (musician)
production assistant
Paula Dias
technical coordination
Rui Pedro Rodrigues
construction technicians
Vítor Silva – coordination
Filipe Garcia, Rui Pedro Rodrigues, Artur Ruivo
scenography construction
Américo Castanheira, Tudo-Faço
lighting and sound operation
Rui Pedro Rodrigues
costume making
Ana Maria Fernandes
stage photography
João Tuna
executive production
Sofia Carvalho
O Teatro de Marionetas do Porto, sobre Magritte, no TAGV
A projeção universal do sucesso serve mal o génio dos verdadeiros artistas criadores, aqueles que implantam no cenário do mundo o rosto mais apreensível das suas contradições e perplexidades.
Particularmente a publicidade, como praga invasora de vulgaridades parasitárias, capaz de tudo para cativar o olhar incauto do consumidor potencial, é um dos processos mais fatigantes do esvasiamento e até da falsificação da imagem como factor de encantamento sensível ou de descoberta refletida.
O espetáculo de teatro que apresentou a companhia de Teatro de Marionetas do Porto defronta-se com a sobre-utilização a que a obra de Magritte tem sido sujeita , por ser um escaparate fortemente sugestivo de paradoxos e surpresas.
A leitura da peça tal como foi explicitamente anunciada tem que contar, preferencialmente, com a familiaridade da obra do famoso artista belga, nacionalidade de criadores surrealistas de inquestionável talento e nem por isso tão universalmente aceites, como é, entre outros, o caso de Paul Delvaux.
Isto como resposta aos meus amigos que questionavam, à saída do teatro, a impenetrabilidade duma grande extensão do espetáculo, de cuja linguagem só escassamente se haviam apropriado, e aos quais fui dizendo que me parece que o trabalho das Marionetas do Porto trouxe até nós um ensejo generosamente abundante de interessantes alusões Magritteanas.
Acontece que na transmutação de reinos que vai da pintura ao teatro, a mediação que nos oferece a propensão literária e filosófica da obra do pintor, não é fácil nem é imediata.
Uma peça desta natureza não conta com nenhuma espécie de enredo, foge ao convencionalismo de um entrecho, cabendo à nossa disponibilidade a aceitação de alusões subtis, o entendimento do jogo cénico como tal e, por acréscimo, como veículo dum certo tipo de universo comunicativo.
De muito bom efeito me pareceu a sonoplastia, reforçada por uma acordeonista em palco que até a partir de simples toques mecânicos nas chaves do instrumento ia acentuando efeitos e sublinhando ruídos.
O misterioso silvo marítimo que varre incessantemente o “plat pays”; o tic-tac dum relógio de sala, quinta-essência de todos os mistérios e de todas as contradições que o pintor incansavelmente glosou, assumindo com certa volúpia o convencionalismo burguês e urbano que a própria obra contradiz e o rumorejar da água noturna que amortalha a mais dolorosa ausência, a mãe, a dona do rosto oculto pela “écharpe”.
Vieram até nós igualmente a surda respiração íntima, os sinos e as gargalhadas, e um sem número de palavras/aforismos que na obra em apreço são tão abundantes e essenciais.
Para matizar um pouco o sentido de apreciação positiva que suscita este espetáculo, como tantos outros que nos visitam, uma pequena confidência lateral, em jeito de pergunta: será possível que algum dia irrompa do palco, sem que ninguém espere, algo de verdadeiramente provocante e inovador, que desafie o sentido de medida da tal trivialidade balofa e burguesa de que Magritte foi tido como provocador e sabotador tranquilo?
Será que a linearidade intelectual, o humor comedido e a reincidência poética serão os únicos destinos possíveis das nossas timoratas pretensões e que “ceci n’est pas …”?
Costa Brites,
in “Diário de Coimbra”, 21 de março de 2003
Encenar o universo de Magritte
Estreia hoje o espetáculo “O Príncipio do Prazer”, com encenação de João Paulo Seara Cardoso – Viajem ao mistério e à instabilidade
Um homem e uma mulher beijam-se através do tecido de lençol que lhes envolve a cabeça. A observá-los, um grupo de indivíduos com ar impassível e com uma indumentária comum: longo sobretudo, chapéu de côco e um guarda-chuva. A cena paira durante alguns instantes como um estranho cerimonial, sem qualquer vínculo de nexo ou casualidade. Momentos antes haviam sido bonecos, as marionetas, a configurarem-se de igual modo. O mistério, o desassossego, a pintura.
De fragmentos como este se compõe o espetáculo que o Teatro de Marionetas do Porto levará à cena a partir de hoje e que se prolongará até ao dia 23 de fevereiro, com residência no Auditório do Balleteatro, no Porto.
O Princípio do Prazer é um projeto do encenador João Paulo Seara Cardoso, que parte da ideia de transpor para o teatro a imagética dos quadros de René Magritte (1898-1967), o pintor belga que se distinguiu nas correntes do surrealismo, da pintura metafísica e do realismo mágico.
A proposta, altamente arrojada e inovadora, desenrola-se em sucessivos quadros que evocam as telas de Magritte: os seus motivos, paradoxos e enigmas. A atmosfera em palco apropria-se desse estranheza, através de um cenário simples e minimal, onde se sobrepõem sons de relógio, ruídos da rua, o gotejar de torneiras e um acordeão.
As personagens e as suas falas escapam de um universo plástico, comunica por situações retratadas, aludem a objetos específicos da obra de Magritte. A poética sobre a poética. Dentro da mulher transparente há uma cidade. A memória é o sangue a correr na cabeça da estátua.
Pelas frases desfilam os quadros. O Império da Luz, Os Amantes, A Condição Humana. O teatro como exposição ou a pintura encenada?
“Sou um obcecado pela contemporaneidade”,diz Seara Cardoso, “e penso que as artes plásticas representam sempre a vanguarda do pensamento artístico”.Para este encenador, o texto não é o elemento primordial do teatro.”O importante é captar o espírito profundo de uma determinada obra, as suas motivações, e aí encontrar ressonâncias com as questões fundamentais que o teatro aborda”.
O ovo dentro da gaiola. Lola a beijar a sua própria boca. O desconcerto e a intranquilidade perpassados por um erotismo obsessivo. As figuras fetiche do pintor belga: os homens de chapéu de côco, as maçãs, a rosa gigante, os objetos fora do seu contexto, desafiando a lógica e a perceção.
Seara Cardoso aventura-se num universo instável, de pré-consciência, onde os significados se prestam à imaginação ou à simples entrega a um novo formato, sem leis conhecidas ou inteligíveis; apenas uma sonda pelos mistérios mais fundos do real.
Ricardo Fonseca
in “Diário de Notícias”, 24 janeiro 2003
Réne Magritte na visão peculiar do autor e encenador João Paulo Seara Cardoso
É o peculiar universo simbólico de René Magritte que João Paulo Seara Cardoso explora na sua mais recente peça. “O Príncipio do Prazer”, que hoje estreia no Balleteatro Auditório, percorre a obra do pintor surrealista belga. Das suas obsessões oníricas passando pelo comprometimento político, até à poesia inerente nas suas imagens está de tudo um pouco no palco “non sense” do autor.
Na apresentação deste “ O Príncipio do Prazer”, João Pauo Seara Cardoso admite que o mundo das artes plásticas “ sempre o fascinou”. Há muito que pensava fazer um trabalho acerca de pintores como Van Gogh ou Kandinsky, até porque para o encenador, o “texto não é um elemento essencial para o teatro”. Aberto, então, a outras formas de expressão, decidiu-se pelo mundo surrealista de Magritte (1898-1967) e dos seus “pensamentos visíveis”, segundo expressão do próprio pintor.
Esta abertura a um leque tão rico como o da pintura permite a criação de uma linguagem cénica e de uma encenação invulgares. Seara Cardoso admite mesmo que o mais dificil num tipo de encenação deste género é não cair na, “encenação de quadros”. Por isso o que o autor fez foi, por um lado, analisar profundamente cada quadro e pôr em palco a sua própria interpretação. Por outro, tentou criar situações que pudessem quase contar uma pequena história, imaginando o que estaria antes ou depois do momento representado por Magritte.
As diversas questões que ocupam a obra do autor belga, como a realidade e a sua representação – que para ele são quase que incompatíveis ou até contraditórias – estão também assumidas neste trabalho. Num dos seus quadros, por exemplo, René Magritte apresenta um cachimbo e por baixo uma legenda que diz: “ceci n`est pas une pipe”(“isto não é um cachimbo”). A verdade é que aquilo é apenas a representação daquele objeto, não o objeto em si.
Na peça, esse jogo de conceitos aparece constantemente. A determinada altura, uma das personagens da peça – como que acabada de sair de um dos quadros de Magritte retoma a expressão “isto não é” para percorrer todo o universo iconográfico do pintor.
João Paulo Seara Cardoso explica – a propósito da inclusão de texto na peça – que a determinada altura do processo de trabalho achou importante esse elemento. Diz mesmo que se debruçou sobre os textos de autores surrealistas, nomeadamente portugueses, mas que ficou “desiludido”, pois o seu universo pouco tinha a ver com o de Magritte.
Decidiu-se, por isso, por um texto original, feito a partir da leitura linear dos quadros, como de “Os Amantes”, que sugere a frase “os amantes beijam-se através do lençol” ou “A Memória” – “o sangue a correr da cabeça da estátua”.
De referir ainda a existência de uma banda sonora de Roberto Neulichedl, interpretada por Shirley Resende. A peça, uma coprodução do Teatro de Marionetas do Porto, da Coimbra – Capital Nacional da Cultura e do Teatro Nacional de S. João, vai ficar em cena até dia 23 de fevereiro.
Luísa Marinho
in “Jornal de Notícias”, 21 de janeiro de 2003
Aproximações a René Magritte
Partindo da obra do pintor belga Magritte, Seara Cardoso criou para o Teatro de Marionetas do Porto “O Príncipio do Prazer”, que estreia hoje no Balleteatro Auditório. Explorando os ícones da obra do pintor, o espetáculo corre num tom onírico, até 23 de fevereiro.
“Ceci n`est pas une pomme”. « Ceci n`est pas une rose ». « Ceci n`est pas la nuit ». « Ceci n`est pas moi « . « Ceci n`est pas vrai ».
Isto não é real. Poderia ser o mote para o espetáculo “O Príncipio do Prazer”, uma imensa alegoria construída em torno da obra de René Magritte, o pintor surrealista belga que afirmava que a pintura era um modo de “tornar visíveis os pensamentos”. Como fazer um espetáculo a partir de pinturas de pensamento? Avisando que nada é real e esperando que o resultado não seja uma mera colagem de quadros em movimento.
Este foi, realmente, o medo maior de João Paulo Seara Cardoso, o encenador do espetáculo que o Teatro de Marionetas do Porto estreia hoje no Balleteatro Auditório. “O primerio receio de quem está a encenar quadros”, reconhece. A fórmula de superação vem sob o signo de uma imposição, “escavar, escavar”, para “tentar entender as motivações profundas do que está por detrás de cada quadro” – afinal, os quadros de Magritte não podem ser simplesmente vistos, precisam de ser pintados. Convite, portanto, à invasão do universo pictórico de Magritte para dele retirar ressonâncias das “questões fundamentais que o teatro aborda”.
Tal não significa, contudo, não usar (e abusar) da exploração dos ícones imediatos da obra do pintor belga – porque eles estão lá, os homens de fato-sobretudo-chapéu de côco, as maçãs, as rosas, os guarda-chuvas, os ovos, as rochas. E estão também as referências concretas a quadros de Magritte. Por exemplo, quando seis marionetas sobretudo-chapéu de côco entram, uma por uma, e se instalam no parapeito de uma janela magritiana para coreografarem uma subida ao vazio – controladas por três atores/manipuladores, também eles de sobretudo-chapéu de côco, reforçando a ideia de ausência de identidade que se esconde em tal indumentária -, é impossível não pensar em “Golconda”. Do mesmo modo, as figuras que deambulam no palco com guarda-chuvas coroados por um copo remetem de imediato para “As férias de Hegel”, filósofo do agrado de Magritte – o tema da oposição dos contrários, da inversão de valores, é constante na obra do belga (o espelho não reflete todas as imagens, o interior mostra o exterior, a silhueta aparece recortada na cortina…).
Porém, o que anima este espetáculo é o desvendar “do antes e do depois”, os segredos e os mistérios que as telas (instantâneos?), elas próprias, encenam, alimentadas de obsessões que lhes emprestam um tom onírico. Onirismo que sobrevém no palco, onde as coisas não precisam de ter sentido para fazerem sentido. “Procuramos que exista uma história, mas uma história ao nível dos sentidos”, explica o encenador. Para isso também contribui uma banda sonora debitada por um acordeão e assombrada por sons de relógio e pêndulos.
O príncipio do texto
O texto, apesar de escasso, constitui uma parte fundamental da poética de “O Príncipio do Prazer”. Escrito por João Paulo Seara Cardoso, que se esconde sob pseudónimo de Paulo Chaim, é o resultado da construção de uma fábula a partir da visão pessoal dos quadros – “cada frase é uma evocação mais ou menos longínqua do quadro”, explica – embora tenha começado por pegar em textos de surrealistas, que largou posteriormente. O título da peça foi escolhido, assumidamente, aleatória. “É o título que eu mais gosto de todos os quadros de Magritte”, explica o encenador. “E se ele punha títulos sem correspondência com o representado, porque não o posso eu fazer?” No entanto, é indiscutível que a presença feminina é forte, quase obsessiva” na obra do pintor belga. O que também é verdade neste espetáculo, atravessado por um subtil elemento erótico.
Andreia Marques Pereira
in “O Primeiro de Janeiro”, 24 de janeiro de 2003
Em O Princípio do Prazer, que hoje estreia no Balleteatro Auditório, há coisas imunes à gravidade, marionetas. Como os homens de chapéu de côco que pairam nas paisagens de Magritte.
Não, não é exatamente como entrar num museu e dar de caras com a antologia integral de René Magritte ao vivo e a cores. “Ceci”, poderia até dizer o encenador João Paulo Seara Cardoso a propósito da sua mais recente criação para o Teatro de Marionetas do porto, “n`est pas Magritte”. “O Príncipio do Prazer”, a peça que hoje estreia no Balleteatro Auditório ao abrigo do Programa Transporto, um dos núcleos da programação do novo Auditório Carlos Alberto, é um exercício de estilo sobre coisas que ficam suspensas uma mão invisível: coisas ostensivamente imunes à lei da gravidade como as marionetas em geral e como os homens de chapéu de côco que pairam nas paisagens surreais do pintor belga. Entra-se e dá-se de facto com alguns dos mais óbvios ícones da pintura de Magritte – a maçã que não é uma maçã, o casal que se beija através do lençol de “Ao Amantes”, o chapéu-de-chuva-com-um-copo-de-água-incluído de “ As Férias de Hegel”, o homem com a lua no chapéu de “Le Maître d`École” ou as três mulheres de “L`Embellie” – , mas a apropriação é livre, impressionista e até traiçoeira. “O que fazemos aqui é encenar a pintura”, afirma Seara Cardoso. Mas não literalmente.
Há uma lógica nuclear na obra de Magritte que o Teatro de Marionetas do Porto importou diretamente nesta incursão ao campo minado da pintura surrealista: a relação entre o que se vê e o título do que se vê é absolutamente fraudulenta. Para Seara Cardoso, esse princípio de absurdo – a libertinagem sem pudor que leva Magritte a chamar neve a um chapéu e deserto a um martelo, em curto-circuito com toda a tradição da linguagem figurativa – é a regra de ouro deste trabalho. O título é uma exceção.
“Nunca me preocupei muito com essa questão. Os títulos de Magritte eram meras hipóteses poéticas, sem qualquer correspondência com a realidade. De todos os que ele inventou, este é o que mais me agrada. E, na verdade, sinto que há um esboço de prazer neste espetáculo”, admite o encenador. Um prazer que tem a ver com frutos proibidos: maçãs carnudas e mulheres de vestido vermelho.
Se o pretexto fosse Bosch, talvez a química fosse a mesma. Seara Cardoso gosta de atalhos: normalmente, ignora a dramaturgia e vai buscar os seus espetáculos a universos não teatrais. “Sou um bocado obsessivo na procura de outros pontos de partida. Sempre tive vontade de fazer um espetáculo a partir da pintura. Pensei em várias hipóteses: Kandinsky, Goya, Bosch… Cheguei a pensar num espetáculo inspirado no “Jardim das Delícias”. Mas o universo de Magritte pareceu-me o melhor caminho”, explicou ao Y. Não é difícil perceber porquê: alguém disse que o pintor belga foi o mais poético dos plásticos, mas é possível inverter os termos e ainda assim fazer sentido. O mundo delirante de René Magritte – um mundo cheio improvável em que os comboios saem da lareira, em que os pássaros são feitos de nuvens e os cachimbos não são cachimbos – foi uma mina para as oficinas do Teatro de Marionetas do Porto. Foi de lá que saíram a rosa vermelha, o olho gigante, as maçãs verdes e os homenzinhos de chapéu de côco que circulam no palco do Balleteatro, estruturando um espetáculo que é sobretudo visual. Mas quando pensa em Magritte Seara Cardoso pensa também num de perturbações: “Os quadros dele transmitem uma certa imponderabilidade, uma sensação de impossível, de ironia em relação à realidade. Tudo isso contribui para uma certa intranquilidade”. Bem-vindos ao desassossego.
Teatro com marionetas. Tal como em todos os anteriores espetáculos do Teatro de Marionetas do Porto, “O Princípio do Prazer” é o resultado de uma dupla inseparável: Seara Cardoso encena, Júlio Vanzeler desenha as singulares marionetas que são imagem de marca da companhia. Para já, pelo menos: à semelhança do que acontecia em “Paisagem Azul com Automóveis”, este é mais um espetáculo de atores (Edgard Fernandes, Sérgio Rolo, Marta Nunes e Mariana Portugal compõem o elenco) do que de seres inanimados manipulados por gente invisível. O que significa, esclarece Seara Cardoso, que há aqui “uma ideia muito pessoal de teatro em que as marionetas não são obrigatórias e só entram na medida do estritamente necessário”. Para uma com este nome, o anúncio é sísmico: “Cada vez mais fazemos mais um teatro com marionetas do que um teatro de marionetas”, avisa o encenador, satisfeito com “esta caminhada em direção a uma maneira ,muito própria de fazer teatro”.
No universo infinitamente reprodutível da obra de Magritte – não são só as suas obras mais populares que são donadas em t-shirts e isqueiros, é também a omnipresença de certos motivos quadro após quadro -, as marionetas são uma ajuda preciosa. “Essa ideia de que elas funcionam como duplos, como clones dos atores é uma constante dos nossos espetáculos. A clonagem , que é uma possibilidade técnica oferecida pelas marionetas, tem alguma correspondência com a uniformização de comportamentos que caracteriza o mundo em que vivemos”, observa o encenador. Gosta disso, de poder refletir sobre um mundo num mundo em que somos todos clones uns dos outros, apesar de ainda não usarmos fato completo, gravata vermelha e chapéu de côco. Essa, acrescenta, é também uma forma de produzir o desassossego. É óbvio que há qualquer coisa de profundamente desconfortável na imagem de um homem de chapéu de côco que manipula ao milímetro os passos de outro homem de chapéu de côco. Não é só uma ilusão ótica.
Palavras que dão a ver. A versão final de “O Princípio do Prazer” é o resultado de um interno processo de corte e costura: à partida, o universo era infinito e foi preciso fazer eclipsar muitas das cenas que pareciam possíveis. O cachimbo, por exemplo, foi à vida. Poderá integrar uma “exposição de objetos recusados” no “foyer” do Balleteatro, lado a lado com a reprodução de algumas das telas de Magritte que inspiraram definitivamente este espetáculo. Conhecer a obra do pintor belga não é um pré-requisito para poder ver esta produção do Teatro de Marionetas do Porto, mas ajuda. “Quando fizemos o “Nada ou o Silêncio de Beckett” percebemos que quem conhecia o universo lia as coisas de outra maneira”, recorda.
O espetáculo que hoje estreia, porém, vale por si, mesmo que estabeleça irremediáveis “links” com a obra surrealista. Seara Cardoso brinca com isso: várias das cenas do espetáculo decorrem no espaço circunscrito de uma moldura, como que a lembrar este é um universo pilhado com a pintura. Em palco, porém, também há coisas para ouvir: a música original de Roberto Neulichedl que a acordeonista Shirley Resende interpreta em “on”, a um canto da cortina vermelha, entre tiquetaques de relógio e o barulho demasiado certo de engrenagem invisíveis.
“Quando perguntei ao Roberto qual era o instrumento que ele associava ao Magritte, ele disse imediatamente “acórdeão”. Foi exatamente o que eu pensei. É impossível perceber porquê”, confessa. Mas há mais coisas para ouvir: palavras, palavras estranhas que dão a ver. Paulo Chaim escreveu um texto em rajadas, “patchwork” de títulos de quadros, descrições literais do que se passa nas telas de Magritte e pequenos poemas avulsos. Não foi à primeira, admite Seara Cardoso: “Sempre achei que o texto era um elemento dramatúrgico fundamental para este espetáculo. O primeiro caminho foi completamente errado: fomos buscar textos ao universo surrealista, mas não resultou”. Ficaram as tais frases que dão a ver mundos fora do mundo: “O deserto é a lua/O leão é o de pedra/ Há uma chuva de homens de chapéu defronte das casas/O cavalo corre sobre o automóvel verde/ A floresta em pedaços a voar/ As nuvens a fugirem para dentro dos olhos/ As estrelas a brilharem em segredo/ Um morto sentado/ um pão a esvoaçar/ A voz do silêncio na sala às escuras”. E agora a dúvida: sonho ou realidade?
Inês Nadais
in “Público”, 24 de janeiro 2003
A Pintura do lado do Palco
Duas peças teatrais propuseram-se evocar os universos pictóricos de dois artistas: por um lado, Magritte e o surrealismo; por outro, Kandinsky e o abstracionismo. Ambos os pintores foram geniais: as obras por eles inspiradas é que se mostraram desiguais.
“O Princípio do Prazer” – Isto não é Magritte!
“Ceci n`est pas une pipe”. A afirmação nada teria de estranho não fosse o caso de legendar a imagem de um cachimbo. Trata-se de uma das obras em que Magritte entrou na história da pintura universal, um dos seus convites para o mistério – termo caro aos surrealistas. Da mesma forma que o referido quadro de Magritte nega a evidência, também de “O Princípio do Prazer” poderíamos dizer que não tem qualquer ligação com Magritte. E, no entanto, tem tudo – e nesse “tudo” cabe o convite para que mergulhemos nos abismos do seu mistério.
Qualquer tentativa de “tradução” do universo de Magritte teria de passar pela mais absoluta infidelidade: só pela traição seria possível manter fidelidade às faculdades mágicas da sua obra. “O Princípio do Prazer” é, por isso, um trabalho insolentemente infiel ao universo de Magritte. É-o na resistência em ser ilustrativo ou decomponente, em ser uma mera anumação das suas telas. É, acima de tudo, um jogo de sensações, uma narrativa de estímulos que se acompanha com ânsia. Ao invés de quadros baseados em quadros, temos janelas abertas para os campos magnéticos que o alimentam.
Começa-se por dar corda a um relógio. O tic-tac que se segue será a medida do rigor com que a peça progredirá. Os elementos visuais da obra de Magritte são dispersos pelo tempo e pelo espaço em linhas precisas. Homens de chapéu de coco, maçãs, ovos, guarda-chuvas encimados por copos, tabuleiros com céu lá dentro e o mundo a fazer dele chão, mulheres com rosas aumentadas, mulheres a representar homens com chapéu de coco, homens com chapéu de coco que manipulam pequenos homens com chapéu de coco, homens cujo rosto flutua… Os apelos ao fantástico e ao metafórico são imensos. E depois há o acordeão, há uma canção em francês que, sem o pronunciar, nos diz para fecharmos os olhos…
Sejamos (sur)realistas: a investida teria mais probabilidades de malograr do que ser bem sucessida – receou-se isso no início. Era fácil fazer um espetáculo “bonitinho”; era fácil fazê-lo “histérico”; era fácil fazê-lo desconcertante. A dificuldade estava em proporcionar-lhe (des)equilíbrio e fluidez suficientes para mantê-lo vivo. O surrealismo é já letra morta, pelo que seria provável resvalar a homenagem polida. A virtude desta peça está na capacidade de ultrapassar a componente plástica de Magritte, em sintonizar-nos com a sua força vital. É verdade que há falhas a nível da pronúncia francesa em algumas falas, é verdade que se podia ambicionar mais na temática surrealista, mas isso não retira nada à excelência desta proposta. Encenado por João Paulo Seara Cardoso e levado à cena pelo Teatro de Marionetas do Porto, “O Princípio do Prazer” é um espetáculo belíssimo e que ninguém deve perder.
“O Princípio do Prazer” pode ser visto no Balleteatro do Porto, de terça-feira a sábado às 21h30 e domingo às 18h00, até 23 de fevereiro.
Sérgio Gomes Costa
in “Blitz”, 4 de fevereiro 2003