The five senses served at the table to mark the twentieth anniversary of Teatro de Marionetas do Porto, which began with the memorable presentation of Entre a Vida e a Morte/Capuchinho Vermelho XXX (1988) in the French city of Charleville-Mézières, the puppets’ world capital. In Boca de Cena: Teatro-Jantar (theatre-dinner), the theatre “with” marionettes uncovers unsuspected affinities with gastronomy, Artaud fraternizes with Pantagruel, the stage becomes a very performative tasting menu, the actors/waiters coexist closely, very closely, with spectators/diners and contemporary electronic music harmonizes with Schubert lieder. All this could result in a toast to the health of Marionetas do Porto, in a festive review of contents, but João Paulo Seara Cardoso wrings his neck to the ephemeris and risks an original assembly of unforeseen events, radicalizing the distinctive marks of a project that has been reinventing itself in the border of many artistic languages and where “poetry” almost always rhymes with “anarchy”. Kitchen and fusion theatre to celebrate the past with all the senses put into the future. Just as saying that the best is yet to come. Cheers!
João Paulo Seara Cardoso
marionettes and costumes
Júlio Vanzeler
text
Anselmo Pires
choreographic coordination
Isabel Barros
lighting design
António Real and Rui Pedro Rodrigues
sound design
Dominique Poquelin
production
Sofia Carvalho
cast
Edgard Fernandes
Sara Henriques
Sérgio Rolo
Shirley Resende
Jaime C. Soares
waiter
Miguel Santos
waitress
Juliana Ferreira
stagehand
Rui Queiroz de Matos
marionette painting
Inês Coutinho
lighting and sound operation
Rui Pedro Rodrigues
production assistant
Pedro Miguel Castro
marionette and prop construction (Marionetas do Porto)
Inês Coutinho
Erika Takeda
Pedro Pereira
Rui Freitas
scenography construction
Américo Castanheira, Tudo-Faço
costume making
Cláudia Ribeiro (coordination)
Glória Costa, Esperança Sousa (seamstresses)
Catarina Barros (prop designer)
Patrícia Mota ( prop assistant)
hairstyles
Hairtz Cabeleireiro
stage photography
Paulo Barata
video recording
Widescreen
support
Cace Cultural, Matéria Prima, O Vício do Café
sponsorships
Sogrape, Cozzza Rio
Na cozinha de Boca de Cena
Sessões estão todas esgotadas
Teatro de Marionetas do Porto celebra 20 anos
Para assinalar o 20.° aniversário do Teatro de Marionetas do Porto, o encenador João Paulo Seara Cardoso sabia que queria concretizar “uma grande festa com o público”. Inspirado numa peça que viu na Alemanha, em que era servido um almoço, criou “Boca de Cena: teatro-jantar”, apresentado no Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto, em que o teatro com marionetas “descobre afinidades insuspeitas com a gastronomia”. Desde a sua estreia, a 14 de dezembro, o espetáculo tem multiplicado lotações esgotadas. O JN partiu, então, à descoberta dos bastidores da produção, na qual “os cinco sentidos são servidos à mesa”.
18.30 horas
Preparação da sala
Os claustros do mosteiro estão às escuras. O espaço, apesar de grande, é invadido por um calor que contrasta com a chuva torrencial que galga os passeios da Rua de São Bento da Vitória. O silêncio sepulcral é invadido pelos passos ligeiros de Miguel, num entre e sai da única sala com luz.
Aí, logo atrás do ‘palco’, reside a cozinha improvisada de “Boca de Cena”. Enquanto espera pela entrega do jantar (que já vem previamente cozinhado), o ‘garçon’ vai repartindo com Filipa a tarefa de escolher a louça. Primeiro, os pratos; depois, os talheres; e, por fim, os copos (dois por pessoa), que são limpos pacientemente um a um.
Para alinhar tudo em cima dos dois braços estreitos de mesas, Miguel e Filipa perdem a conta às vezes que sobem e descem os cinco degraus que os leva à cozinha.
Mas ainda é preciso trazer as chávenas de café para duas mesas de apoio, fora da vista do público. Segue-se o vinho e a água.
Miguel confidencia, ao JN, que, por noite, são gastas 24 garrafas de Grão Vasco. “Mas, normalmente, ao fim de semana, a média sobe”, acrescenta, entre risos.
Na “sala de jantar” está, ainda, Rui Pedro, que, num jogo de paciência, desmonta uma marioneta, que todas as noites ganha vida. “Can’tfeelmylegs” (‘Não consigo sentir as minhas pernas’), graceja Rui, dividindo a marioneta em duas partes.
Duas horas e meia antes do início do espetáculo, o ambiente é indescritivelmente descontraído. “Nas primeiras sessões, havia receio de que acontecesse algum imprevisto, mas, agora, as coisas estão já mecanizadas”, disse Pedro Miguel Castro, assistente de produção. Por esta altura, os atores – Jaime C. Soares, Sara Henriques, Edgard Fernandes, Shirley Resende e Sérgio Rolo – ainda não chegaram. “Devem estar a jantar”, ouve-se.
Os focos laterais, rentes ao chão, vão sendo ligados. É o retomar de funções, depois do descanso à segunda-feira. Nos bastidores, um extenso balcão paralelo ao palco tem ainda os vestígios da mais recente sessão. As marionetas dividem protagonismo com garrafas de água e pares de luvas pousadas ao acaso. Afinal, em cena, os atores são também garçons e garçonettes.
19.00 horas
Chegada dos atores
Edgar é o primeiro ator a chegar. De gorro enfiado, traz debaixo do braço um ramo de rosas vermelhas. As mesmas que serão vendidas em cena por uma marioneta que impinge “uma frô” durante a degustação dos pratos.
“A Sara é quem está responsável por trazer as roupas da lavandaria” . Edgar segue, compenetrado, o exercício de colocar à frente de cada prato” as bandeirinhas”, sinalética que cada comensal poderá usar ora para chamar o garçon, ora para pedir mais vinho.
19.26 horas
Preparar o jantar
“Onde está o vidro do bolo? Como é transparente, quase não se nota!”. Logo depois, Miguel corre, apressado, para a rua. “Chegou a comida”, grita. Dentro de quatro caixas térmicas, chega o jantar.
Os movimentos parecem já mecânicos. Enquanto Miguel leva os pães para a sala de jantar, Filipa, na cozinha, vai alinhando as “espetadas de vegetaisbaby”. Mais tarde, junta-se Juliana. Difícil pensar que todo o trabalho de preparação do jantar é feito por apenas por três pessoas.
20.15 horas
Contrarrelógio
Dois andares acima da sala de jantar, os atores vestem a pele de garçons. Em menos de dez minutos, estão todos na “Boca de Cena”.
Entre aquecimentos musculares e de voz, vão-se concentrando. Miguel passa com o vinho verde entre sacos de gelo.
“É melhor mudar a pilha aos microfones”, alerta Sérgio. Experimenta-se o som gravado.
Faltam dois minutos para a peça começar. A sopa está ao lume e o cheiro da comida vai propagando-se por todo o mosteiro.
“Vamos abrir. Merda!”, ouve-se, às 21 horas em ponto. Logo atrás do pano de fundo, vão-se enchendo, em contra-relogio, os copos nos quais será servida a sopa.
Marta Neves
in “Jornal de Notícias”, 19 de janeiro de 2008
E no fim da festa, atirar-se da janela
Boca de Cena
Pelo Teatro de Marionetas do Porto
Encenação de João’Paulo Seara Cardoso
PORTO Convento de São Bento da Vitória, dia 18, às 21h00. Casa cheia
Desta vez, sim, pode-se beber e fumar no cabaré de fim de ano do Teatro de Marionetas do Porto. Aliás, janta-se no espetáculo. Quem quiser fazer um balanço do ano teatral ao vivo pode dirigir-se ao Convento de São Bento da Vitória, onde encontrará uma subtil reflexão sobre a condição dos atores e marionetistas, numa festa e espetáculo de Natal a pretexto da evocação dos 20 anos da companhia; e ainda por cima terá direito a matar a fome. As diversas cenas que acompanham e intercalam o serviço são ligações para a história do grupo, que durante 2008 vai repor os espetáculos anteriores; e permitem relembrar algum do teatro de 2007, graças à variedade dos números, por um lado, e à subversão dos papéis convencionais de ator e de espectador que o jogo de cena provoca. Pode também refletir sobre o tipo de alimentação que faz ao longo do ano e preparar-se para as rabanadas, os sonhos e as filhós. Mas, sobretudo, quem lá for vai encontrar uma outra ligação com espetáculos deste ano e de Natais passados – a festa como modelo possível de cena teatral, distinta da cena de rua ou da cena doméstica. (Essa parece ser uma das duas tendências emergentes no teatro da cidade do Porto em 2007. A outra é o design de cabelo dos Anjos Urbanos e congéneres.)
O convite alargado à participação do público, a interação com os espectadores, a animação de interlúdios; a sucessão de microeventos, de fragmentos de ação, de conversas, de números de variedades, recordações, anedotas, piscares de olho, canções – tudo se assemelha à estrutura de uma noite de celebração. Há até quem se atire de uma janela, como nas festas em condições. Se as Marionetas fazem 20 anos, é melhor que assim seja, e a destreza com que festejam é notável. E se as cenas de festa são uma tendência na composição de espetáculos, atingem aqui um grau de maturidade superior: os comensais frente a frente, como num banquete, formam parte do cenário do espetáculo, e uma filmagem com os rostos de todos antecede a citação de Shakespeare que encerra o espetáculo: “All the world’s a stage, and all the men and women merely players.” Ou seja, no final da festa, reconhecemo-nos como iguais, sob proposta das Marionetas, tendo partilhado os nossos sonhos vagos e efémeros. Há vésperas de Natal piores, como sabemos. O inconveniente é que o modelo parece esgotar as energias na dispersão de microeventos, e esse reconhecimento mútuo resulta apenas momentâneo. Mas é como todas as festas, não é? O espetáculo tem um momento especial, quando são servidos teatrinhos à mesa, em tabuleiros rolantes. Revemo-nos nessas miniaturas, uma das quais regista a imagem que depois é projetada na despedida da festa. Mais uma vez, a mediação das Marionetas faz com que a fantasia se concretize. Quem não gostaria de se atirar de uma janela?
Jorge Louraço Figueira
in “Público”, 21 de dezembro de 2007
O cozinheiro, o leitão, a cheerleader e o palhaço dela
Boca de Cena é o jantar de aniversário do Teatro de Marionetas do Porto (20 anos, e o relógio continua a contar). Mesa para 48, por favor, de terça a domingo, até 27 de janeiro
Uma das possibilidades era fazer um especáculo que se visse (grande coisa: o Teatro de Marionetas do Porto faz espetáculos que se veem há 20 anos). Outra das possibilidades era fazer um espetáculo que se comesse (grande coisa, mesmo: em 20 anos o Teatro de Marionetas do Porto plantou couves, mostrou o dedo do meio ao lobo mau e transtornou adultos com sólida formação moral, mas uma coisa destas ainda estava para acontecer). Acontece agora: a companhia fundada em 1988 por João Paulo Seara Cardoso faz 20 anos e festeja desde ontem no Mosteiro de São Bento da Vitória com um jantar para 48 pessoas. Não é só sentar e comer (queríamos…). É sentar, comer, beber, fumar, falar ao telemóvel, agitar freneticamente a bandeirinha laranja (mas só em caso de emergência), olhar para as fotos do tempo em que o Leitão da Bairrada ainda estava vivo (descanse em paz, de preferência aqui nesta mesa), comprar flores ao paquistanês e assistir em direto à morte sangrenta de Ronald, o palhaço do McDonald’s.
20 anos depois, João Paulo Seara Cardoso não sabia por onde começar. Decidiu começar pela sopa. “Queríamos um espetáculo especial para dar início às comemorações, salvo seja, dos 20 anos da companhia. E estávamos nesse ponto quando fomos em digressão à Alemanha, onde vimos um espetáculo que era um almoço. Eu achei tão estimulante ver o ato de comer encenado que fizemos logo um rapidíssimo brainstorming e decidimos fazer um jantar”. Até 27 de janeiro, há 48 lugares à mesa, de terça a domingo (sopa trágica, espetada de vegetais baby, arroz exótico em cama de abacaxi, delícia de frutos suspensos e bolo da paixão, mais vinho, mais café, tudo a 20 euros). É a operação logística mais complexa de sempre para o TMP. Mas é por uma boa causa: de certa maneira, este espetáculo é uma versão compacta da história da companhia. Também há aqui porquinhos (e um lobo mau), como há sete anos. Mortes, como há 20. E números de cabaré, como no ano passado (basicamente: aqui não há nada que não nos aconteça).
São os dois lados, Dr. Jeckyll e Mr. Hyde, de João Paulo Seara Cardoso: o lado que conta histórias às criancinhas e o lado que mostra pornografia aos adultos. Vamos ver o cozinheiro bom a matar o palhaço mau (e as cheerleaders vão ficar tristes). Mas também vamos ver um leitão a morrer só para o bem de um musical (“Fui assado a 240 graus / Metido num espeto por homens maus”). Vamos ver uma maçã a arder enquanto George W. Bush discursa sobre o bom povo afegão. Vamos ver um casal na cama a discutir o preço da carne de vaca. Podemos ficar a pensar no assunto ou podemos continuar à procura de framboesas na gelatina (ou pedir mais vinho agitando freneticamente a bandeira vermelha: se é para a desgraça, é para a desgraça) – mas vai ser difícil fingir que não é nada connosco porque, dentro do macro-espetáculo que é Boca de Cena, há micro-espetáculos que são feitos só para nós. “Os teatrinhos à mesa são pequenos teatros dentro do teatro. É bom ver as coisas muito de perto e ouvir frases que são ditas só para nós”, diz Seara Cardoso. Se há coisa que ele aprendeu com este espetáculo foi esta: “É possível fazer teatro em situação de proximidade física com o público. Fazer um espetáculo num corredor, com público dos dois lados obrigou-nos a isso”.
Fazer 20 anos obrigou-os a muito mais coisas. Boca de Cena é só a ponta do icebergue: até novembro de 2008, o TMP vai repor 15 espetáculos, num total de 172 apresentações em Portugal e 40 no estrangeiro. “Esta programação comemorativa tem muito a ver com a nossa maneira de estar no teatro. Não deitamos as peças fora, somos uma companhia de repertório”. Aceitamos a explicação de Seara Cardoso. Mas temos outra: as marionetas não morrem.
Inês Nadais
in “Público”, 16 de dezembro de 2007
Quando a arte é servida em pratos quentes de criatividade
“Boca de cena”, do Teatro de Marionetas do Porto, oferece um jantar ao público
Os claustros do Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto, transformam-se numa imensa sala de um restaurante pouco vulgar, onde, durante duas horas e meia, cinco “garçons” acrescentam ao repasto uma boa dose de episódios hilariantes, sugeridos por um mote comum: “Devemos amar o próximo ou ter muito cuidado com aquilo que comemos”. Assim estão reunidos os ingredientes de “Boca de cena: teatro-jantar”, espetáculo do Teatro de Marionetas do Porto, que estreou ontem, e que assinala o 20.° aniversário da companhia.
“Numa digressão a Alemanha, vimos uma peça que era um almoço. Achei tão estimulante estar a comer e a ver teatro que lancei a ideia à companhia”, contou, ao JN, o encenador João Paulo Seara Cardoso (ver entrevista ao lado).
O esforço de mais de três meses de ensaios – dificultados pelo trabalho de “encontrar uma dramaturgia que pudesse ser articulada com as diferentes fase de uma refeição” – resulta num espetáculo criativo, no qual o teatro de marionetas descobre afinidades insuspeitas com a gastronomia.
Uma marioneta, antiga bailarina de cabaret, vestida num modeIo encarnado ao jeito de Jessica Rabbit, serve de anfitriã à noite, enquanto chupa, por uma palhinha, um gin tónico servido num copo esguio.
Do menu, fazem parte uma sopa trágica, espetada de vegetais baby, arroz exótico em cama de abacaxi, delícia de frutos suspensos, bolo da paixão e café
Depois, serve-se um incessante número de ações ao ritmo da degustação do menu: sopa trágica, espetada de vegetais baby, arroz exótico em cama de abacaxi, delícia de frutos suspensos, bolo da paixão e café.
Não sem antes o público ficar a conhecer a sinalética do jantar, como o abanar de uma bandeirinha xadrez sempre que fosse necessário chamar um empregado.
No espaço onde a assistência ganha a liberdade fictícia de um qualquer cliente, há a certeza de que o apelo dos cinco sentidos é sugestionada por doses certas de um espetáculo onde nada foi esquecido. Nem mesmo uma marioneta de baixa estatura, que desliza pelos corredores estreitos das mesas e tenta impingir uma flor.
“Boca de cena: teatro-jantar” é também o encontro do público com o intimismo criado por tabuleiros que passam ao correr das mesas, criando pequenos teatrinhos.
A mais recente produção do Teatro de Marionetas do Porto está em cena até ao próximo sábado, havendo depois uma segunda temporada de 2 a 27 de janeiro. O bilhete custa 20 euros.
“Pensei fazer uma festa com o público”
“Boca de Cena” é uma celebração dos 20 anos do Teatro de Marionetas do Porto?
A ideia é essa. Realmente tinha pensado que seria um espetáculo especial.
De onde surgiu a ideia?
Numa digressão à Alemanha, vimos uma peça que era um almoço. Achei tão estimulante estar a comer e a ver teatro que lancei a ideia à companhia.
É um espetáculo feito de vazias histórias ?
Sim, tem muito da estrutura do espetáculo anterior. Pensei, sobretudo, em fazer uma festa com o público.
Porque o teatro está muito sisudo, muito formal. A ideia era que houvesse liberdade para quem estivesse a ver.
Foi uma encenação difícil?
Teve muito trabalho de decoberta. Primeiro, como encontrar uma dramaturgia que pudesse ser articulada com as diferentes fases de uma refeição. Depois, é a primeira vez que fazemos um espetáculo em que o espaço é um corredor com público dos dois lados.
Marta Neves
in “Jornal de Notícias”, 15 de dezembro de 2007
Uma peça (a)provada
Há duas décadas que o Teatro de Marionetas do Porto apresenta, nos mais distintos palcos, diversas peças de teatro. Para a comemoração, foi criado o «Boca de Cena»; um espetáculo/jantar que prima pela proximidade ao público.
A provar até 22 de dezembro.
O Teatro de Marionetas do Porto prepara-se para comemorar os 20 anos da sua existência. Durante o próximo ano será possível assistir às encenações que foram sendo criadas e levadas ao palco pela companhia, cuja atividade começou com a «Miséria», no âmbito de uma edição do Festival Mundial de Marionetas de Charleville-Mézières. Entretanto, a companhia já criou cerca de 30 espetáculos, participou em itinerâncias nacionais e internacionais, reunindo um vasto repertório. Volvidas duas décadas, surgiu a ideia de “uma grande festa com o público”, algo diferente já que a alma é a busca da novidade “para não cristalizar”, explicou o encenador João Paulo Seara Cardoso. Pretendia-se criar “um momento partilhado”, de “liberdade, mas condicionada, de quem está a ver”. Surge assim o «Boca de Cena», uma peça que além de espetáculo é também um jantar, tendo-se encontrado, para tal, uma “dramaturgia que se enquadrasse às diferentes fases de uma refeição”.
Os cinco sentidos
Numa sala especialmente preparada, entre paredes de pedra e os claustros do século XVII do Mosteiro de São Bento da Vitória, juntam-se os comensais que partilham de duas grandes mesas. Apagam-se as luzes e entra em cena a boneca/atriz, pedindo um Lá para aquecer a voz. Surgem os atores que são os próprios empregados de mesa, enquanto o som alterna entre os vibratos de uma voz única e o ritmo frenético e acelerado de uma música metálica e transcendente. Os gestos repetem-se maquinalmente ao sabor de uma sopa trágica. Deleita-se o gosto e o paladar e uma cor quente inflama os sentidos. Cirurgicamente serve-se um arroz selvagem em cama de abacaxi; sugere-se a operação delicada de saborear e sentir a textura dos alimentos que se misturam na boca. O espectador/convidado já não é dono do seu ritmo. Vai sendo atordoado pelo som e silêncio, a serenidade do dedilhar de um piano que contrasta com o outrora carmesim do tomate. É um manjar celebrado, delicado. É a voz que envolve, o poema declamado sem pudor enquanto se planta um jardim de rosas. A degustação continua e, pausadamente, dissolvem-se passas doces e o suco amargo do fruto que deixa soltar um fio dourado entre os lábios. Pausa. Termina a primeira parte da refeição. É hora do cigarro, das conversas cruzadas, das informações trocadas ao telemóvel, do SPAF (Sistema Protetor Anti-Fumo) e dos quatro minutos em que não acontece nada, mas mesmo nada.
Voltam as luzes, a ação. Lembram-se os 20 anos do Teatro de Marionetas do Porto e agradecem-se todas as palmas e “vivas” de um público “fofinho” a quem são oferecidas “festinhas grátis”. O toque, o tato, o sentido que faltava despertar. Durante todo o espetáculo/refeição, e num plano escondido, distraído, vai-se construindo um boneco; a marioneta/personagem que, sob o olhar surpreso dos convivas, vai ganhando vida e percebendo a sua condição. Correm-se as mesas e os planos, ao sabor agridoce de frutos suspensos, e os olhos que buscam sempre mais, até porque, e ao contrário dos atores, as marionetas são eternas.
Liliana Leandro
in “O Primeiro de Janeiro”, 15 de dezembro de 2007
Marionetas gourmet
Uma peça em que os espectadores também são comensais
Boca de Cena começou a surgir na cabeça de João Paulo Seara Cardoso, diretor e encenador do Teatro de Marionetas do Porto, em maio, numa digressão pela Alemanha: «Vïmos um espetáculo em que se almoçava, e gostei muito do conceito», contou ao SOL. Daí até à ideia de teatro-jantar foi um passo: os claustros do Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto, são agora ocupados por duas mesas corridas (lotação: 48 lugares), no meio das quais se situa o espaço de representação principal, usado pelos atores para servir a assistência (também há dois empregados de mesa ‘verdadeiros’).
Mas o público entra igualmente no jogo: os pedidos são feitos através de bandeirinhas (vermelha para o vinho tinto e branca para a água, por exemplo) e sinais luminosos indicam se é permitido fumar ou falar ao telemóvel. Isto porque há vários momentos livres em que o espectador se pode concentrar na refeição ou circular pelo espaço do Mosteiro.
«Este é um espetáculo de cinco sentidos, os atores chegam a tocar no público. Há muita intimidade», resume o encenador, que construiu a peça como uma série de quadros sem ligação aparente, em que os manipuladores não se escondem atrás da marioneta. O tema central é, pois claro, a gastronomia, e não faltam momentos irónicos (o tom geral é «anarca») como Ronald McDonald a ser assassinado com uma faca de cozinha ou coelhinhos a serem comidos pelo lobo mau. Esqueça Ratatui: apesar da quadra natalícia, este teatro-jantar é para maiores de 16 anos. O bilhete único custa 20 euros e dá direito ao menu completo (o prato principal é arroz exótico em cama de abacaxi e no final há bolo de chocolate como bónus). O espetáculo está em cena até ao próximo sábado (às 21hOO, com folga na segunda-feira), mas regressa durante todo o mês de janeiro.
Boca de Cena inicia ainda as comemorações do vigésimo aniversário do Teatro de Marionetas do Porto, companhia criada em 1988: «Há 20 anos não havia ninguém a fazer peças de marionetas para adultos. O feedback tem sido excelente, quer da crítica, quer do público», afirma Seara Cardoso.
João Pedro Barros
in “Sol”, 15 de dezembro de 2007
Festa dos sentidos
No claustro de um mosteiro do século XVII, obtém-se o passaporte para uma viagem aos cinco sentidos, numa experiência sinestésica ímpar. Odor de terra molhada, flores ou pólvora, sons de música eletro pura e dura ou lieds de Schubert, pulsação vibrátil dos corpos, carícias e provocações entram em fusão. Isto enquanto se saboreia um menu de degustação num jantar harmonizado com vinho. Esta produção inédita celebra o vigésimo aniversário do Teatro de Marionetas do Porto (TMP) e arrebata os espíritos para deixar de lado convenções. Para evocar o momento, o encenador e diretor do TMP, João Paulo Seara Cardoso, quis partilhar tudo com o público: palco, jantar de aniversário, emoções, jogos de ritmos e palavras, o corpo do teatro. O corpo do teatro? Sim, porque aqui é tão grande a relação de proximidade entre espectadores, atores (quase cyborgs) e marionetas que se sente a respiração, o toque, os sussurros, quase o corpo só, em lugar do ato teatral. O resultado? Uma intimidade que só mesmo vivida faz sentido. As palavras trincam-se, o ritmo cava, o jogo espeta e a música bate, criando uma espécie de teatro alquímico, de living theatre, onde vale quase tudo. Como diria Artaud, “o teatro atua, basta saber manejá-lo”. Uma máxima que aqui cai como uma luva.
I. O ritmo do receituário
João Paulo Seara Cardoso: “Este espetáculo tem por base a partilha de um jantar e, também por isso, pretende criar intimidade com o público, uma forte aproximação. Gera-se uma estimulante relação teatral entre ator e espectador. Este sente-se parte do jogo e deixa de ser passivo. Creio que a estimulação dos cinco sentidos é inédita num espetáculo deste género, funcionando como uma forma de envolver o público”. O caso não será para menos, pois nesta produção a própria mesa, onde se degusta um menu escolhido a dedo, funciona como espaço de cena cúmplice. Mas não se pense que será um inocente “sentar à mesa”. Aqui, o ritmo é frenético, e será fácil uma sirene transformar-se no Ave Maria de Schubert. O apetite para degustar esta receita múltipla vem sobretudo do imaginário.
Os atores interpelam, dançam, suam, soltam poesia nas palavras e na expressão corporal, rodopiam entre ritmos erotizados da MTV, serenos cantos líricos, piano tocado ao vivo, ou batidas eletrónicas de Dat Politics, Victoria Jordanova e Curd Duca.
A música acaba também por imprimir um forte turbilhão de emoções. “A aposta na eletrónica contemporânea obrigou a um grande trabalho de pesquisa e ajustamento. A transição entre ritmos mais fortes ou mais serenos é essencial do ponto de vista dramatúrgico, porque faz a passagem dos momentos teatrais para os momentos do jantar propriamente dito. Gostamos de usar uma linguagem musical particular em cada criação. Mas aqui a aposta foi mais longe, ao procurarmos uma convivência harmónica entre uma onda eletrónica do séc. XXI e o canto lírico acompanhado com piano acústico. É um pouco arriscado, mas funciona muito bem.”
Por isso, prepare-se para vestir a pele de um verdadeiro comensal, com apetite devorador e sentidos alerta. A receita convida a engolir colheradas de um festim pantagruélico, com pitadas picantes ou suaves. Como se Boca de Cena fosse mesmo a festa de aniversário de um amigo muito especial. E usufrua de toda a liberdade e muito humor, como se estivesse entre páginas de Rabelais. “Espero que seja uma experiência muito intensa para quem venha ver, porque há muitos estímulos criativos e sensoriais em simultâneo.”
A ementa explora ainda o corpo a corpo. “Gera-se uma relação tão privilegiada que podemos encarar o público, personalizadamente, a meio metro de distância. É tão íntimo que podemos fazer-lhes festinhas, eles podem cheirar-nos, estamos olhos nos olhos. Para nós, é uma novidade e um desafio.”
Tendo em conta que tanto o espaço cénico como o conceito de Boca de Cena são inovadores e experimentais, o espetáculo acabou por ser simultaneamente um work in progress. “Tivemos que disparar em direções diferentes, sempre com um grande estímulo criativo. Houve uma pesquisa muito intensa, um trabalho de descoberta permanente. Surgiram várias hipóteses de organização do espaço e esta agradou-me muito. Porque, estando o público frente a frente, a cenografia do espetáculo passa a ser o próprio público. O que vejo atrás dos atores são pessoas, por isso resolvi colocar um ciclorama atrás de cada mesa para moldar a silhueta dos espectadores. Transformo, assim, os espectadores em material cenográfico, o que também é engraçado.”
Fumar, atender o telemóvel, falar com o vizinho, pedir mais um copo de vinho ou ser acariciado por cima ou por baixo da mesa (!) também aqui acontece. Mas, entretanto, entre num TGV à velocidade das músicas num iPod. Por entre uma encenação do ato de bem servir à mesa e de sabores gourmet, há serpentes que se devoram e não deixam rasto, palavras fundas que também se comem, lobos maus e pedófilos, coelhinhos naïf, leitões da Bairrada que falam, cozinheiros que assassinam ícones de fast-food… Um universo pueril e perverso… enquanto saboreia um exótico arroz em cama de abacaxi, bebe um copo de vinho ou cheira um dos vinte odores propostos.
II. Público interativo
As palavras em cena, da autoria do encenador, tornam-se também corpo. “Todos os meus espetáculos têm sempre presente um lado crítico, talvez político. Como neste caso os textos são meus, houve uma maior liberdade para os expandir da forma que bem entendesse.” Descubra as provocações, passo a passo, entre humor negro e leveza lúdica, riso descontraído e cinismo mordaz. “Um espetáculo não pode ser inócuo. Quando construímos a partir das nossas palavras, podemos mais facilmente traduzir as nossas inquietações, a nossa forma de ver o mundo. Por vezes, esse ponto de vista é poético, por vezes sarcástico. A cena dos teatrinhos móveis – que vão passando à frente de cada pessoa, com o seu som e cheiro próprios ou mesmo fogo – é talvez aquela que melhor traduz esta ideia.”
Neste palco sem palco, um imenso laboratório funciona como amuse-bouche e o encenador torna-se uma espécie de “chefe de cozinha”, onde os aromas e temperos, o sal e pimenta, se traduzem nos ritmos dramatúrgicos que imprime. Na música, no jogo de luzes, na dança coreografada, no canto. E porque o menu do jantar de aniversário é, praticamente, o leitmotiv deste espetáculo, a escolha da matéria-prima, das cores dos legumes e das frutas, a harmonização dos sabores e texturas, sempre com a cor carmim a ditar o rumo, obedeceram ao mesmo empenho que todos os outros ingredientes do espetáculo.
Para intensificar a fusão entre espectadores e atores, estes vestem a pele de muito especiais empregados de mesa, apesar de dois – verdadeiros – circularem nos bastidores e atrás do público.
Prepare papilas gustativas e estômago, ouvidos, pele e nariz. A cadência do espetáculo segue a compasso com um menu que abre caminhos gastronómicos e dramatúrgicos. Uma aveludada sopa de tomate com espetada de vegetais baby, onde a cor comanda, abre caminho às surpresas, sempre à flor da pele. Ao mesmo tempo, a energia cinética dos atores, o humor e as cenas lúdicas escorrem-lhe garganta abaixo e cérebro acima.
Segue-se um arroz com abacaxi e amêndoas estaladiças que caminha sempre a compasso com eflúvios báquicos de branco ou tinto, inspirando uma sequência simultânea de transmutações, palavras que engasgam e corpos em ritmo galvânico. Um cristalino pudim de frutos em suspensão com geleia de morango e, em “grand final”, um bolo de chocolate – “Uma prenda que é um ato de celebração com brilho vermelho” – podem ser derretidos na boca lentamente, a contrastar com a postura quase cyborg dos atores. A ideia será sempre descodificar uma metalinguagem que vive entre o ator, as marionetas e o público. Tanto pode degustar um banho-maria como um saltear de emoções que fazem estrépito.
“Há alturas em que o público tem que agir e esse facto provoca uma grande imprevisibilidade. É um pouco complicado para os atores, porque há ações que vão ser determinadas pelo espectador. Mas faz tudo parte da celebração.”
III. Marionetas humanas
A certa altura, o espetáculo parece ganhar vida própria, sangue a correr nas próprias veias, moléculas que se difundem entre som, sabor, visão, tato e odor. “No fundo, é um jogo entre o coletivo e o individual, o potenciar de uma nova forma de comunicar, sem barreiras de palco formais porque, na verdade, a boca de cena aqui é ilusória.” Mais uma vez a evocar o teatro artaudiano, que propugna a inexistência de divisórias entre atores e espectadores, como peças de uma mesma engrenagem. Ou que cultura e vida não existem em formatos separados, “como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida”.
De novo, a filosofia de João Paulo Seara Cardoso quanto à relação ator/marioneta se atualiza para mostrar, sem meias-medidas, a manipulação, ao exibir o mistério, colocá-lo em pele e osso, com novas formas de conceção, a par do relacionamento com outras áreas da expressão plástica. A marioneta como metáfora de nós mesmos, exposta aos olhos do público, expondo a dialética tridimensional com o ator e o espectador, numa trajetória fusional. “Acontece que os nossos esquemas habituais de manipulação de marionetas são muito frontais, próprios para palcos convencionais. Normalmente o ator abriga-se atrás da marioneta. O problema é que neste espaço não há atrás. Curiosamente, esse constrangimento acabou por potenciar a descoberta de outras possibilidades.”
E nunca uma marioneta esteve tão próxima do espectador, o que possibilita perscrutar quase a sua “respiração”, os seus passos, os seus movimentos, junto ao corpo de cada ator, numa quase fusão simbólica mas muito real. Tão íntima que se torna crua, descortinando o sentido dos cinco sentidos. Em cima das mesas, voando ao ritmo dos corpos ou acenando das varandas sob as cornijas do claustro. Algumas são, até, construídas durante o espetáculo, o que o torna ainda mais vivo. Elas humanizam-se aos nossos olhos.
“Descobri uma outra coisa fantástica neste trabalho: as corridas dos atores provocam deslocações de ar e a proximidade é tão grande que o público sente o vento dos corpos. São pequenas descobertas como esta que aos poucos nos vão levando a caminhar em determinadas direções.”
O claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória, só por si, é um espaço cénico e dramatúrgico intenso, pelo que a cenografia é subtil, passando pelos cicloramas que refletem sombras e perfis dos convivas, painéis hipercoloridos e apenas duas mesas corridas para 48 pessoas, frente a frente. Ao fundo, uma cozinha virtual lança explosões, ruído de talheres e tachos, fumos e odores. E se acha que o claustro de um mosteiro pode ser desconfortável ou frio, esqueça. O chão é aquecido e irradia um calor que combina com prazer, como tudo neste espetáculo.
IV. A primeira vez como há 20 anos
“É a primeira vez que fazemos um espetáculo com este tipo de arquitetura teatral. O espaço cénico é constituído pelo corredor que separa as mesas do público, mais metade dessas mesas. É nessa faixa de cinquenta centímetros que servimos ‘teatro à mesa’, que são teatrinhos móveis. Tudo se torna muito sensorial, dada a proximidade do público. Esta organização do espaço, em corredor, colocou alguns problemas de marcações em função da visibilidade do público que, naturalmente, tanto vê os atores e as marionetas de frente como de costas. Isso agrada-me.” Por isso, enquanto saboreia frutos suspensos multicoloridos, não pense que o facto de se sentar à mesa o deixa incólume na atitude. Enquanto rebenta uma groselha na boca, o seu cérebro vai deglutindo imagens, trincando sons e palavras. Pétalas e odores de rosa, vento e cheiro a relva molhada, música cibernética e luzes que mostram o lugar “onde a boca se desfaz na lua” convocam os seus cinco (ou mais) sentidos.
Também não será todos os dias que se comemoram 20 anos. “Mais uma vez, quisemos tentar um caminho diferente, que nos levasse à descoberta de coisas novas. Sempre para evitar cristalizar.” Talvez por isso mesmo, o Teatro de Marionetas do Porto continua com sangue na guelra, apesar da maturidade que se atinge com duas décadas de vida. Desde a estreia de Miséria, em 1988, no âmbito de uma edição do Festival Mundial de Teatro de Marionetas de Charleville-Mézières, a companhia já criou mais de 27 espetáculos, participou em itinerâncias nacionais e internacionais, pela Europa, Brasil e Cabo Verde, reunindo um repertório com momentos memoráveis, destinado a público adulto e infantil. “Não sinto que chegamos a nenhum lado, nem a nenhuma conclusão. Há sempre um recomeço na busca da (in)contemporaneidade e um mar de possibilidades em aberto.”
No final, verá que há muitas semelhanças entre nós, os atores e as marionetas. A única diferença é que as marionetas não morrem. São eternas. Bom apetite!
Fátima Dias Iken
in “TNSJ”