O grande paradoxo do teatro (talvez também o seu maior fascínio) será sempre a inevitabilidade de representar o Homem através do próprio Homem. O ator, com o seu corpo, permanece como material essencial da representação. Com as suas naturais limitações e evidenciando uma falta de distanciamento relativamente à realidade que se propõe representar, ele próprio.
As diferentes correntes teatrais ao longo dos tempos têm-se esforçado por resolver este “aparente” paradoxo procurando encontrar equivalências que tornem a representação credível, permitindo superar as limitações do corpo humano e a sua dupla condição de material de representação e ser representado. O que naturalmente não se processa pela via da mimesis, mas pela busca de linguagens de equivalência, que fazem recurso a um corpo liberto dos seus constrangimentos funcionais, um corpo extra quotidiano, estectizado, ou a outras fórmulas de duplicação do ator, capazes de sugerirem e ampliarem a realidade, suscetíveis de tornarem a “ vida mais legível, mais visível” (Peter Brook).
No Oriente, todas as formas de representação se inserem neste princípio. Sendo a representação dirigida a um público especial, o Divino, com intuitos propiciatórios, o Homem, ser “inferior”, não se poderia assumir enquanto tal como elemento de representação, como agente mediador entre o mundo real e o sobrenatural. Assim, transfigura-se, não se mostra tal como é na realidade, recorrendo a formas de teatro indireto (as sombras, as máscaras e as marionetas) ou à adoção de códigos corporais que o distanciam da sua realidade física, humana (Nô, Kabuki, Katakhali). No fundo, o ator oriental cria um duplo de si mesmo, um elemento mediador, como única via possível de se auto-representar.
Esta noção de duplo tende a esbater-se no teatro ocidental, que ao longo da sua história tem sido, quase sempre, portador de uma dimensão psicológica, assente no primórdio do texto como signo teatral, determinando que o ator seja um simples veículo de personagens ficcionais, de elemento ao serviço da ficção literária. Havendo sempre naturalmente uma duplicidade ator/personagem, os mecanismos de representação “naturalista” procuram criar uma ilusão teatral que acentua mais a fusão do que a dissociação destes dois elementos.
No seu caminho revolucionário para um teatro da convenção, que se opusesse ao naturalismo vigente, procurando um sistema de representação que acentuasse o artificialismo teatral, dando primordial importância à retórica do corpo e do gesto, Meyerhold afirmava que “o ator contemporâneo transformou-se num declamador intelectual” ; e acrescentava: “Construir o edifício teatral sobre uma base psicológica equivale a construir uma casa sobre areia: inevitávelmente se desmoronará”.
Ora, a marioneta é, na sua essência, arte cinética, abstrata, é desprovida de vida psicológica e esta surge na representação como consequência inevitável das ações físicas. Observa-se uma enorme dilatação do espaço entre o ator e aquilo que ele interpreta. Porque o próprio conceito teatral de personagem é posto em causa: a marioneta, pela sua qualidade imagética, pela sua capacidade de criação de universos oníricos, ao mesmo tempo artificiais mas brutalmente humanos, está para além da personagem ficcional, pode apenas representar um estado de alma ou um elemento da natureza, como frequentemente sucede no teatro oriental. Peter Brook extasiou-se com os bonecos Bunraku : “Se forem assistir a uma das coisas mais formalísticas que existem no teatro, os bonecos Bunraku japoneses, as pessoas dirão: Pode-se jurar que estão vivos… Mesmo sendo a forma aparentemente artificial o que se vê realmente é a natureza humana.”
A marioneta encerra em si uma poderosa condição de duplo. De elemento mediador da relação teatral ator/público. Sendo por definição um duplo do Homem ou das suas visões a marioneta é sobretudo um espaço físico, um corpo habitável, um ready-made no qual o ator deposita as suas palavras, as suas ações físicas, os seus estados de alma, não abdicando nunca da sua individualidade, constituindo-se, no limite, como espectador da sua própria representação.
A marioneta estabelece, pela via poética, uma convenção teatral, uma codificação da representação que constitui uma resposta estimulante às incongruências do teatro contemporâneo. Um teatro que se revela, muitas vezes, escloresado, minado pelo arcaísmo que releva da sua condição de arte ancestral, incapaz de exprimir um sentir contemporâneo, fortemente prisioneiro de uma dimensão literária, psicológica, sem capacidade de reação ao enorme poder e fascínio das modernas linguagens de representação audio-visuais.
São as paixões a matéria incandescente do teatro. A marioneta é um corpo inerte, altamente inflamável. O ator confia-lhe a chama da vida. De uma forma intermitente. Assim, ela permanece num limbo entre a vida e a morte. “A vida não pode ser exprimida em arte senão pela falta de vida ou pelo recurso à morte” (Kantor).
João Paulo Seara Cardoso