Entrevista por: Paulo Eduardo Carvalho
14 de novembro de 2005
Transcrição de uma breve conversa em torno de Os Encantos de Medeia entre João Paulo Seara Cardoso e Paulo Eduardo Carvalho , transcrita e editada por este último, realizada no Teatro Carlos Alberto, a 14 de novembro de 2005.
Em 1989, fizeste a Vida de Esopo, e agora, passados dezasseis anos, regressas a António José da Silva, com um outro texto, Os Encantos de Medeia. Em diversos outros anteriores pronunciamentos teus, tens declarado uma enorme admiração pelo universo d’O Judeu. Porquê, agora, este regresso?
Depois de fazer a Vida de Esopo, sempre achei que haveria um dia de voltar ao António José da Silva, porque me fascina a escrita de um autor que tão bem atende à funcionalidade do seu teatro. Muito especialmente tratando-se de uma escrita específica para marionetas. Este sentido da cena encontra-se normalmente nos autores que escrevem peças que eles próprios irão encenar. Tratam-se de textos que, do ponto de vista prático, são muito atraentes, tudo funciona, não havendo, a esse nível, necessidade de realizar grande operações dramatúrgicas. Só me decidi agora por este regresso porque, a dada altura, me apercebi que se comemoravam os trezentos anos do nascimento do António José da Silva, e pareceu-me que poderia ser uma homenagem oportuna. Tal como já o havia feito em 1989, resolvi reler toda as suas peças…
Que, infelizmente, não são muitas…
Exatamente. E, de todas, aquela que me pareceu que responderia melhor aos meus anseios e àquilo que eu pretendia era Os Encantos de Medeia. Porque é – vou ser muito simples – a mais espetacular, permitindo-me tirar melhor proveito de uma das principais características do teatro barroco, que é justamente a espetacularidade…
Mas curiosamente – e estas minhas considerações baseiam-se unicamente no visionamento de um registo vídeo do espetáculo – ou, se preferires, paradoxalmente, parece-me que fazes uma abordagem que não explora tanto esse lado espetacular, optando antes por uma espécie de cativante naïveté, um misto de simplicidade e transparência na utilização dos recursos e das situações espetaculares oferecidas pelo próprio texto. Concordas com esta apreciação?
Concordo… Uma coisa que me chateia no teatro é o fogo de vista, é tornar espetacular aquilo que intrinsecamente não o é. Por isso, eu acho que só “abusei” desse espírito nos momentos em que me pareceu que o autor claramente convidava a isso. Mas claro que tive de fazer simplificações, porque a arquitetura do palco do Teatro do Bairro Alto, em que os manipuladores estavam escondidos e colocados uma ponte que os elevava, permitia muitos aparecimentos aéreos, impossíveis de realizar no tipo de dispositivo horizontal em que fiz assentar a minha proposta cenográfica. Por exemplo, quando ele diz que “vem um dragão pelo ar”…
Tu aqui fizeste-o aparecer de um alçapão. O que não deixa de ser um recurso ostensivamente ligado a uma certa tradição teatral, associado à mais rudimentar e quase amadora maquinaria… Foi, talvez, devido a soluções desta natureza que eu me atrevi a falar de uma certa naïveté, justamente, por explorares recursos de grande simplicidade expressiva, de que são também bom exemplo os pequenos telões com que vais pontuando as cenas, que na sua própria materialidade ostentam um lado muito artesanal.
Pareceu-me que esses telões se adaptariam bem a este tipo de encenação; são fundos pintados que nos oferecem a terceira dimensão da cena, particularmente nas cenas passadas na natureza, ao ar livre, permitindo-nos lançar o olhar para mais longe, projetando-o na distância. Uma pesquisa que realizei, depois de anotar todas as indicações de cena e de estudar alguns teatros análogos que teriam existido na mesma altura, levou-me a refletir sobre alguns dos mecanismos que teriam sido utilizados para a representação das peças do António José da Silva: como a manipulação das marionetas seria seguramente feita por cima, o sistema de mudança de telões não poderia ser feito verticalmente, subindo e descendo, porque isso colidiria com as mãos das pessoas, e nalguns momentos apercebi-me que ele fala em “corrediças”, acrescentando mesmo uma indicação como “corre o cenário na corrediça do meio”, o que sugere a existência de uma “corrediça” à frente e de outra atrás, criando vários planos. Tudo isto faz pensar que, no seu teatro, as mudanças de cena seriam muito rápidas, realizadas pelos contrarregras empurrando telões lateralmente. Embora não tenha chegado a mais pormenores, foi nisso que me inspirei para criar um conjunto de telões com umas rodinhas, só que desta vez em lugar de ser às escondidas, com o apoio dos chamados “tramoistas”, os telões são colocados em cena à vista do espetador.
Esclareça-se que uma das alterações fundamentais com que te confrontas, relativamente às condições originais de representação do teatro do António José da Silva, consiste justamente na passagem de um pequeno teatrinho, de aproximadamente 2 metros, para um palco muito mais vasto, onde tudo está à vista, incluindo os manipuladores, os novos “tramoistas”, etc. Há, para além dos telões com rodinhas, um outro recurso muito expressivo que é a delimitação, com o apoio da luz, de espaços retangulares de representação…
Sim, por um lado, a nossa forma de fazer marionetas em esquema de “manipulação à vista” obriga a criar zonas de luz rigorosas que sobre-iluminam as marionetas e mantêm os atores na penumbra. Por outro, trata-se de criar, nesse espaço de 9 metros por 3, sub-zonas de representação que permitem, também, a sucessão muito rápida de cenas.
Que é outra caraterística deste tipo de dramaturgia, a facilidade com que se muda de ambientes. Ao longo do texto, e depois da entrada inicial da nau dos argonautas, somos confrontados com “mar e montes”, a “sala do trono” de Etas, o rei de Colcos, o “quarto das princesas” Medeia e Creusa, a “sala do palácio”, um “jardim encantado”, etc.
Isso é uma das estratégias dramatúrgicas deste tipo de teatro, nunca permanecer muito tempo no mesmo sítio, porque cria interesse, cria variedade e confere dinâmica à ação. Será importante acrescentar que todas estas considerações que venho fazendo se baseiam naquilo que eu imagino que seriam as representações originais realizadas no Teatro do Bairro Alto. Um facto curioso é que nas minhas abordagens ao teatro do Judeu nunca me apetece fazer algo muito experimental, mas antes imaginar como seria a representação original e a partir daí…
Mas isso será certamente, em grande medida, consequência do facto de sabermos só alguma coisa, estando longe de sabermos tudo sobre esse teatro. Daí que talvez te sintas estimulado por alguma da informação de que dispomos e, simultaneamente, convidado a um exercício mais imaginativo e especulativo, permitido pelo muito que não sabemos ou que só parcialmente conhecemos.
Para mim, trata-se de um exercício de imaginação fabuloso. Estes textos chegaram até nós, atravessando trezentos anos, algumas das partituras originais também foram entretanto descobertas, por isso nós sabemos, digamos, metade do que se passava. Sem dúvida, que me fascina descobrir ou, se preferires, explorar o que seria a representação. E parece-me que este interesse pelas origens é partilhado por outros criadores portugueses, porque muitas das últimas representações que se têm feito de António José da Silva em Portugal utilizam a música original, o que denuncia um fascínio comum pela recuperação histórica.
Mas tudo isso se prende com uma outra declaração tua sobre a singularidade do António José da Silva, justamente o facto de ele ter escrito este teatro para marionetas, isto é, um teatro extraordinariamente rico do ponto de vista de literário e teatral, que tinha o teatro de marionetas como destino original de representação.
Naturalmente que, para mim, isso é uma dimensão adicional de fascínio. Será bom recordar que havia, no século XVIII, um movimento muito importante, no seio do teatro barroco, destinado às marionetas. Mas é verdade que nenhum atingiu a importância que, em Portugal, atingiu o teatro do António José da Silva. Por exemplo, em França existe uma expressiva história do teatro barroco para marionetas no século XVIII, mas sem nenhum autor que alcance a dimensão dramatúrgica do Judeu. Analisando alguns desses textos, de autores cómicos coevos, ainda mais notório se torna o valor do António José da Silva mesmo ao nível da recuperação de um certo imaginário da commedia dell’arte na esteira de um Goldoni, por exemplo. O dramaturgo português inventa, através da fusão da riquíssima tradição espanhola que o antecede e das novas formas propostas pela ópera. Neste ponto parece-me clara a influência do seu amigo compositor António Teixeira. E é fantástica a dimensão que o António José da Silva e seu grupo de colaboradores conseguem dar ao Teatro do Bairro Alto, onde fazem aquilo que quase me atreveria a chamar “grandes produções”. Com orquestras de cerca de dez músicos mais outros tantos cantores, isto é, quase vinte pessoas só para a música, é legítimo pensarmos na dimensão do investimento, financeiro e artístico, que aquelas produções envolviam. Por isso, quando se diz que o teatro do António José da Silva é singular, até na questão dos meios de produção ele afirma essa singularidade. Não será a grande ópera, mas é um grande teatro.
Há uma outra dimensão extraordinariamente sedutora nos seus textos, para a qual o próprio José Oliveira Barata chama a atenção no seu livro sobre o dramaturgo e a sua época – História do Teatro em Portugal (Séc. XVIII): António José da Silva (O Judeu) no Palco Joanino, Lisboa, Difel, 1998 –, que se prende com a frequência com que encontramos alusões à materialidade daquele teatro. No caso de Os Encanto de Medeia, recordaria dois momentos, ilustrativos desta referência muito expressiva à materialidade dos bonecos, ambos atribuídos ao “gracioso” criado Sacatrapo. Um deles é quando, em cena com Arpia, ele recupera o “escangalhado com riso” sugerido pela criada das princesas, para dizer: “Escangalhe-se vossa mercê à sua vontade que eu lhe apertarei os parafusos”. O outro, ocorre após o combate, quando descreve: “tudo quanto encontro são horrores, tudo o que ouço são tambores e tudo o que vejo são bonecos mortos. Que será isto?”. Imagino que para um criador como tu, que tanto tem explorado os recursos expressivos da marioneta, resulte como particularmente sedutora esta consciência, textual e dramaturgicamente expressa, do próprio material que com trabalhas.
Sem dúvida que sim, embora… vou-te confessar: os dois exemplos que deste fui eu que os inventei. Porque, como conhecia muito bem o estilo de bocas do personagem-tipo do “gracioso”, que aparece em todas as peças, senti-me autorizado a tomar certas liberdades. Quando um personagem diz ao outro “já tens bichos na cara”, porque é de madeira, ou sugere “vai pintar a tua carinha com óleo de linhaça” ou, ainda, “já ranges das articulações”, isto abre um imenso campo de possibilidades que também me pareceu interessante explorar.
Mas então, o teu trabalho sobre o texto, além de uma redução funcional, também incluiu alguma invenção…
Enfim, serão algumas graçolas… Mas eu devo dizer que quando entro no universo do António José da Silva, a dada altura, sinto-me capaz de escrever por ele uma tirada inteira. Penso, contudo, que essas terão sido as duas únicas invenções que acrescentei ao texto mais algumas pequenas frases para dar lógica a determinadas sequências cortadas. Eu estou convencido que o ambiente de representação no Teatro do Bairro Alto seria festivo e descontraído com muito espírito de improviso, até mesmo na tradição dos Bonecos de Sto. Aleixo, incluindo até a participação do público. Mas devo acrescentar que fui também buscar algumas coisas ao manuscrito da Vida de Esopo, que o José Oliveira Barata descobriu, coisas com muita piada que foram depois cortadas da publicação posterior, talvez porque pouco próprias para a moral e os bons costumes da época. Tratam-se de pequenos passos que terão sido utilizados nas representações, mas que nunca mais foram ditos depois daquela época. Um bom exemplo é a réplica genial que o Sacatrapo diz a Arpia, quando esta recusa o casamento, mesmo já no final do espetáculo: “Olha, minha boneca, para ti o das Caldas”. Isto encontra-se nesse original manuscrito da Vida de Esopo, dito pelo Esopo, que é o gracioso equivalente ao Sacatrapo. Estou convencido de que o António José da Silva iria anotando no seu manuscrito algumas coisas que iam surgindo ao longo das representações – um pouco como nós próprios vamos fazendo, em espetáculos que vivem um pouco mais do improviso, como aconteceu como o Vai no Batalha (1993). Além disso, como se vivia uma época de plágios fáceis e outras piratarias, pensa-se que só haveria um texto, para reduzir as possibilidades de passar para terceiros. Daí que seja provável que, nesse texto original, fossem incorporadas muitas das coisas que iam surgindo durante as representações. Quando o texto avançou para a edição, muitos desses acrescentos terão sido ignorados, sobretudo muitas das piadas mais brejeiras. Tratam-se, claro, de graças ditas pela ralé, pelos criados “graciosos”, mas que me parecem muito importantes para reforçar a eficácia comunicativa destes textos, construídos de forma tão elaborada e sofisticada, junto do público mais popular a que se dirigiam os espetáculos.
Sendo claro que tentaste preservar a narrativa original, gostaria de saber com base em que critérios é que realizaste a já referida redução funcional do texto, de modo a chegares a um espetáculo com aproximadamente metade daquilo que seria a sua duração original.
Numa adaptação para marionetas, sobretudo num registo cómico, há sempre a tendência para privilegiar a ação, a funcionalidade. Uma cena longa representada com marionetas, com certa densidade de texto, é difícil mantê-la interessante. Devo dizer que as minhas adaptações de texto são muito intuitivas, tenho muita dificuldade de fazer isso a priori, e é ao longo dos ensaios que vou não só cortando, mas também remontando, isto é, deslocando uma ou outra cena porque me parece que, num outro momento, poderá assegurar uma maior dinâmica, etc. Trata-se, claro, de reduzir a extensão textual, mas também de encontrar uma lógica de progressão da ação que se adapte melhor à encenação. É uma dramaturgia de corte e costura, muito intuitiva, realizada sobretudo em ato.
A verdade é que conseguiste preservar alguns excelentes momentos e alguns dos mais fascinantes exemplos da escrita barroca do António José da Silva, como quando Jasão se entrega a uma extraordinária elaboração discursiva sobre o seu dilema amoroso, entre as promessas a Medeia e a paixão por Creusa: “Bem aviado estou eu se me descuidar em adorá-la; mas como pode o meu amor deixar de ter descuidos, se em Creusa tenho todo o meu cuidado”. Mas também há outros jogos mais assumidamente lúdicos, como quando Sacatrapo recupera o “deveras” utilizado por Creusa para ironizar: “Com veras, reveras e tataraveras”. Sente-se que a nível da própria linguagem há uma espécie de espírito tão lúdico como aquele que pode ser proporcionado pelo jogo físico dos bonecos.
O que se nota é que há um gozo enorme na escrita e no jogo das palavras e dos sentidos, e que o dramaturgo domina com idêntica mestria a linguagem popular e a linguagem mais erudita, aqui incluindo a poesia, a forma recitativa, orquestrando tudo isso com imensa destreza. Claro que, como qualquer criador, tem passos melhores e outros menos bons. Eu tive a tendência para preservar no texto aquilo que me pareceu mais representativo e característico da escrita do António José da Silva.
Estamos, aliás, a falar de textos cujo destino e ambição última era a cena, não a glória literária… Uma outra dimensão muito importante do espetáculo é aquela que me parece prolongar alguma da pesquisa que vens realizando em torno da relação entre o manipulador à vista e a marioneta. Recordo um momento em que tu próprio, como manipulador do Sacatrapo, resolves dar uma espalhafatosa cambalhota juntamente com a marioneta, ou outros momentos em que os próprios manipuladores interagem e contracenam substituindo-se, por breves instantes, às marionetas.
Ao partir para esta encenação com meios tão reduzidos – um estrado, buracos e fundos pintados–, eu já estaria, mais ou menos conscientemente, a criar estímulos para que fossemos levados a encontrar soluções desse género, simples e criativas. No caso da cambalhota, tratava-se, por exemplo, de encontrar uma solução “airosa” para resolver um problema complicado, o da entrada de Sacatrapo em cena cuspido por um dragão. Daí a entrada espalhafatosa a que te referes, em substituição do dragão, que não tinha. Mas para mim a encenação é também isso e o teatro joga-se muito nas equivalências… no encontrar de soluções simples, com eficácia teatral, sem ter de recorrer a meios excecionais.
Mas, uma vez que tu ainda há pouco justificavas a tua atração por este texto pela espetacularidade que ele te permitia, perguntava-te qual a justificação dramatúrgica para os momentos que aproveitaste para levar mais longe o espetáculo cénico, como aqueles em que associas um efeito pirotécnico à primeira aparição do dragão ou quando fazes aparecer a máquina associada a Medeia?
Penso que esses momentos correspondem à dimensão mais sobrenatural e fantasiosa do texto… A máquina associada a Medeia resulta da minha paixão pela maquinaria, mas também surge naturalmente em consequência da própria atração do teatro barroco pelas máquinas teatrais. Recordem-se as ondas do mar do teatro barroco, que são feitas por um processo muito semelhante ao que usamos. A dada altura, resolvi fazer um levantamento de algumas dessas maquinarias históricas e percebi que os sistemas são sempre muito simples, à base de cordas e roldanas no caso da mecânica de palco, e muito inventivos no que se refere à produção de efeitos especiais: a máquina do vento, a máquina das tempestades, que é só uma chapa, o sistema de black-out e mudança de cor das luzes, que são lamparinas, etc. É fascinante… A própria questão dos alçapões foi-me sugerida pela tradição associada ao teatro das marionetas. No teatro do António José da Silva, o palco seria a Terra, enquanto tudo aquilo que estaria por debaixo do palco estaria conotado com o Inferno, as profundezas, o desconhecido, e o ar seria o domínio das divindades, do etéreo.
Mas a figuração última que acabaste por dar à máquina associada a Medeia parece-me ser particularmente eficaz. Num texto, e num espetáculo, que é globalmente muito “gracioso”, o facto é que os “encantos de Medeia” são também os “enleios de Medeia” e as “injúrias de Medeia” e ainda, como surgem nas palavras do próprio Sacatrapo, também “as fúrias, as iras, as chamas, os raios”. Há, assim, uma dimensão claramente explorada na apropriação do mito pelo António José da Silva, que é o lado da feiticeira e do sobrenatural, que me parece figurada com muita felicidade no gesto cénico introduzido por aquela máquina.
O que eu senti, a dada altura, foi que de per si a marioneta não adquiria o poder sobrenatural que eu desejava que a Medeia conquistasse no final da peça. Senti que precisava de um gesto que aumentasse a dimensão teatral da Medeia. Aquela maquineta é, numa primeira fase, dragão, depois é máquina de mar e sereias, sempre tudo abordado de forma muito naïf, é verdade, embora dando expressão ao prodigioso domínio da Medeia, capaz de fazer mover todas aquelas forças da natureza, ali consubstanciadas numa solução mecânica.
Outro investimento claro do espetáculo é a preservação da dimensão operática original: há um grande trabalho musical, que recupera, com a distância devida, muitos dos temas barrocos, traduzidos até na sonoridade de alguns instrumentos, como o cravo e o órgão, e que se estende ao próprio labor musical dos intérpretes, aqui também transformados em cantores, dando expressão aos muitos números musicais previstos no texto. Pergunto-te se isto já tinha acontecido com a Vida de Esopo.
Não, na Vida de Esopo houve um equilíbrio entre os cortes de texto e das canções. Agora aqui, em Os Encantos de Medeia, cortei muito texto, cerca de 40%, mas a certa altura comecei a fazer prevalecer um certo espírito musical e acabei por manter as 18 árias originais. Claro que tive muito medo desta opção. Uma das grandes dificuldades na encenação de uma peça do António José da Silva é, sem dúvida, a música, nomeadamente quando estamos a trabalhar com atores e não com cantores. No nosso caso, uma hipótese poderia ter sido a de contratar cantores para resolver alguns dos complicadíssimos problemas musicais que a peça levanta.
Recordo-me que uma encenação bastante marcante de Os Encantos de Medeia, produzida no Porto, pelo TEAR, em 1983, com encenação de Castro Guedes, recorria justamente à colaboração de cantores líricos, como a soprano Rosário Ferreira…
Esse é um modo de resolução, e esse espetáculo resolvia muito bem alguns dos problemas que o texto do António José da Silva pode colocar a uma representação teatral sem marionetas. Neste caso, não me agradou a ideia de parar a ação, e a intervenção dos intérpretes, para que alguns eventuais cantores pudessem intervir, como duplos dos personagens. Além disso, faz parte do entendimento que tenho das competências de um ator ele conseguir cantar e cantar bem. Resolvi, assim, investir num trabalho mais intenso de formação que permitisse melhorar as nossas aptidões como cantores, que potenciasse a própria expressão teatral das partes cantadas. A estrutura destes espetáculos é quase brechtiana, e isso para mim era muito importante preservar. Felizmente, eu trabalho com um compositor italiano, o Roberto Neulichedl, em quem eu tenho a máxima confiança, e que tinha acabado de fazer um mestrado em música barroca. Ele próprio me propôs fazer algo que recuperasse algo da estética da música barroca e das suas harmonias, o que me pareceu ir claramente de encontro à nossa abordagem cénica, isto é, partir de uma base de época, de uma espécie de aproximação histórica, para depois criarmos algo de novo. E a música que ele compôs revelou-se perfeitamente eficaz, mas também muito exigente, o que nos obrigou a um trabalho muito intenso. É evidente que nós não cantamos “bem”, mas continuo convencido que entre a voz de um cantor formado e as nossas, continua a fazer mais sentido esta opção. Além disso, o envolvimento do intérprete no canto reforça o seu entusiasmo em cena, transforma-se num exercício muito estimulante, até mesmo pelo modo como retoma essa tradição antiga associada ao teatro.
Outra das tuas opções claras na sinalização da origem histórica do texto foi, também, a manutenção das pequenas luzes de ribalta…
As luzes da ribalta serão uma opção mais “poética” ou até visual, do que propriamente técnica.
Uma solução mais pontual, mas de recorrente e coerente naïveté, foi aquela que encontraram para a figuração dos exércitos em confronto na guerra…
Bom, encenar uma guerra em teatro, ao contrário do que acontece no cinema, não é propriamente muito fácil. Nós fomos passando por várias soluções, até começarmos a pensar na referência ao teatro de papel, de que também existia uma tradição, capaz de preservar a tal dimensão lúdica de que vimos falando, e acabámos por optar por aquela espécie de “brinquedo”, convencidos que isso não acarretava nenhuma perda da intensidade dramática da cena. Claro que aquela solução corresponde a uma estética nossa, que se traduz no fabrico de marionetas planificadas a partir de impressões de computador. Como o nosso criador de marionetas, o Júlio Vanzeler, é sobretudo ilustrador e gosta muito de fazer ilustração em desenho de computador, pareceu-me particularmente sugestivo que as marionetas fossem feitas de uma forma mais primitiva, com as mãos dele, amassando o barro, e que isso fosse compatível com desenhos que ele faz no computador, enfim, que as duas coisas pudessem coexistir na linguagem visual do espetáculo. Aqueles dois exércitos são também uma máquina. Tivemos de descobrir o modo de, com base num sistema parecido com o de biela e manivela do comboio, conseguir articular o rolamento das rodas e os movimentos dos soldados, assegurando, ao mesmo tempo, que a expressão de todo o dispositivo continuasse a ser controlável pelo manipulador. Claro que a teatralização da batalha é reforçada pelas vozes dos atores e pela banda sonora. Tudo obedeceu, de algum modo, ao princípio de que o menos é mais: a ideia de partir de coisas simples, tentando fazer do pouco muito.
Embora reconheça que esta é uma pergunta perversa, não resisto a perguntar ao criador e intérprete como é que tem funcionado o espetáculo, nas representações que já teve antes desta carreira no Teatro Nacional S. João?
Com muita sinceridade, muitíssimo melhor do que qualquer um de nós esperava.
E com públicos muito heterogéneos?
Muito heterogéneo. A primeira apresentação foi num festival de marionetas, com um público especializado e num teatro parecido com o S. João, o Teatro Garcia de Resende. Os espetáculos seguintes tiveram lugar no recentemente inaugurado Teatro Lagoa, no Algarve, durante o mês de agosto, no âmbito de Faro Capital Nacional da Cultura, e mereceram uma receção excecional. Finalmente, a experiência na inauguração do Teatro Virgínia, em Torres Novas, para um público mais diversificado e formal, foi também uma experiência muito boa.
Imagino que essas reações te ajudem a sentir como efetivamente recuperado um certo apelo popular originalmente associado às obras do António José da Silva.
Sem dúvida nenhuma. O espírito que emana destes textos é tão forte que eu posso confessar que foi a primeira vez na minha vida que me atrevi a estrear um espetáculo que não estava fixado antes da estreia: improvisámos durante todos os ensaios, improvisámos na estreia, e continuamos a improvisar em todos os espetáculos que fazemos. E quando falo aqui em improvisação refiro-me inclusivamente a movimentos novos que não estão previstos. Mas nada disto foi programado, nem racionalizado, aconteceu, simplesmente. Daí que, uma semana antes da estreia eu me tenha atrevido a validar o “espírito” do Judeu e a aconselhar os atores que, sem perda de rigor, prosseguissem esta via de renovada exploração. O que tem criado uma atmosfera fantástica na representação, absolutamente contagiante. Por exemplo, na estreia, eu fiz uma coisa que nunca tinha feito, como que “possuído” por tudo aquilo: quando o Sacatrapo dá um salto, a fugir das cobras, eu exagerei no salto, e fui cair em cima da pianista. Claro que ela ficou aterrorizada, mas o público achou imensa graça, nós também e isso dá-nos alento para preservar esse lado cómico, de grande gozo, partilhado por quem faz e quem vê. E permito-me imaginar que as representações no Teatro do Bairro Alto tinham este lado de prazer festivo, de deleite dos sentidos. O que também explica o imenso sucesso das representações da época e das sucessivas reedições das obras do António José da Silva.
Permite-me ainda a expressão do mais puro fascínio por um momento do espetáculo, que ainda não referi, e que sintetiza brilhantemente o jogo das marionetas e o espírito do espetáculo, de que vens falando: refiro-me à transformação das árvores em ninfas. Parece-me um momento de muito feliz associação entre a magia protagonizada por Medeia e a própria magia do teatro, expressa num tão simples recurso cénico.
Essa é uma cena que foi sujeita a um intenso processo de depuração. Uma vez que estamos num jardim encantado, um lugar fantástico e mitológico onde se encontra o Velocino de Ouro, comecei por encher o espaço com imensas flores e elementos pretensamente maravilhosos, mas depois acabei por tirar umas coisas num dia e tirar outras noutro, até ficar com o palco vazio, só com as duas árvores. Já que referes a “magia do teatro” há um outro momento para mim muito importante no espetáculo, que é a revelação do fundo do palco no final do espetáculo. Por um lado, é a exposição e desnudamento de um lado secreto do espetáculo, por outro, é também a sugestão das profundezas e de alguma ancestralidade ligada ao teatro… Nesse momento os atores estão todos sentados no chão do palco e cantam o coro “Se amor é um encanto…” O que eu gostaria era que esta cena final fosse uma celebração do amor, afinal o leitmotif de todos estes “encantos” e por outro lado uma alegoria da nossa condição humana, da nossa vida… entre o céu e a terra.