Pequenas reflexões nos 20 anos do Teatro de Marionetas do Porto
“Todo o ser que tem os sinais da vida sem ter vida invoca forças extraordinárias.”
Maeterlinck
A linguagem sensível
Andamos há já vinte anos a contar histórias a pequenos e grandes. O facto de fazermos criações alternadamente para adultos e crianças produz um fenómeno que nos deixa muito satisfeitos. Uma grande parte do nosso público atual de espetáculos para adultos é formada por pessoas que assistiram aos nossos espetáculos quando eram crianças. Está na moda falar de formação de públicos e este parece-me um interessante exemplo.
Uma das perguntas que frequentemente nos fazem é no sentido de saberem que agulhas mudam na nossa sensibilidade criativa quando fazemos espetáculos para adultos ou para crianças? Tentado a dar uma resposta rápida, diria que se trata de um processo inconsciente, as ideias vão-se formando em nós e vão sendo postas em prática e nós desempenhamos durante o processo de ensaios o duplo papel de atores e público. Ou seja, como se costuma dizer, fazemos para nós próprios. Mas, seja no teatro ou na escrita, de forma mais ou menos consciente, há em nós, criadores, uma presença subliminar do público para quem estamos a fazer. Somos sensíveis ao nosso interlocutor, ao objeto da nossa criação. E isto é muito mais verdade nos espetáculos criados para a infância. Por vezes parece haver um espectador invisível que assiste aos ensaios, uns olhinhos que observam atentamente o que estamos a fazer, uma presença pequenina que se ri, que se assusta, que aplaude, que critica. E eu chamaria ao que resulta deste processo de linguagem sensível.
De todos os espetáculos que já fizemos até hoje, talvez aquele que mais me ensina no que se refere a uma linguagem sensível para crianças seja “Joanica-Puff”. É uma espécie de matriz. É certo que não foi escrito para teatro, mas respira teatralidade e é de tal forma rico na forma que a adaptação teatral em pouco mais consistiu do que retirar os diálogos do texto e estruturar harmoniosamente a narrativa. Puff resulta da escrita das histórias que Milne contava ao seu filho para ele adormecer e o fabuloso elenco de personagens não são senão os bonecos de peluche que se encontravam desarrumados pelo quarto. Objetos afetivos, pois. Por isso esta escrita é uma escrita sensível. Por detrás de uma aparente simplicidade está o amor de um pai ao seu filho. É ele o objeto. Por isso aquela linguagem naif e absurda nos deixa uma bela sensação de encantamento. Porque aquela escrita não é mais do que a espuma que aflora à tona das ondas fortes.
Maravilhas teatrais voadoras
Meyerhold, em carta escrita ao grande marionetista russo Obratzov, chamava às marionetas maravilhas teatrais. E são, na verdade, as marionetas que introduzem o deslumbramento no ato teatral. Despojadas, desafetadas, com movimentos essenciais, as marionetas não imitam nada, não fazem de conta que são o personagem A ou B, elas são o personagem. Estão aliás condenadas a sê-lo eternamente. A sua aparência foi moldada pelo escultor, a sua personalidade pelo ator. Nomeadamente tratando-se de um público infantojuvenil não tenho dúvida nenhuma de que o grau de credibilidade de uma personagem interpretada por uma marioneta é superior à de uma personagem interpretada por um ator. O ator, enquanto ser vivo, introduz no ato da representação um elemento dissuasor da credibilidade dessa mesma representação. Encurta a distância entre a realidade representada e a ficção criada em palco restringindo, de certo modo, a possibilidade de uma metáfora teatral porque é ao mesmo tempo o que representa e o que é representado. Por sua vez, a marioneta funciona como mediador de uma linguagem complexa, a linguagem teatral, introduzindo um distanciamento propiciador da verdade da personagem. O que pode induzir uma genuína atitude de recusa ou identificação por parte do público.
É essa marioneta mediadora que, liberta dos constrangimentos funcionais do corpo humano, na forma e no espírito, nos permite com uma enorme liberdade insuflar sinais de vida à própria matéria dos sonhos, aos devaneios mais surreais. Assim entramos numa nova dimensão do jogo teatral e jogamos com prazer o jogo das impossibilidades. Por exemplo, o voo e uma certa poética que lhe está associada encontra-se invariavelmente presente nos nossos espetáculos.
“… as marionetas não obedecem à lei da gravidade. Porque a força que as eleva no ar é superior àquela que as retém no solo… como os elfos, não necessitam do solo senão para o aflorar e reanimar o voo…”
Heinrich von Kleist
Animadas de um sopro mágico as marionetas esvoaçam livremente nessa cena/palco/pensamento e conduzem-nos a universos oníricos. E assim, Polegarzinho voou nas asas do corvo, o pelicano Gabriel levou a sua amada andorinha-do-mar num voo romântico sobre a Praia Grande, Joanica-Puff subiu num balão azul à árvore das abelhas para alcançar o desejado mel, Alice foi descendo suavemente no buraco profundo, o Porco Cambalhota cambalhotou até à lua e nunca mais voltou…
O grande e o pequeno
“O teatro de marionetas manifesta-se como o micro mundo que nos oferece o reflexo mais irónico do mundo real.”
Meyerhold
Também o jogo com as escalas dos objetos cénicos e das marionetas – libertas da sua condição realista – pode ser muito interessante. Há uma história que já encenamos e que creio não poderia ser encarada sem o recurso às marionetas: “Polegarzinho”. Desde sempre tive um especial fascínio por esta história. A pequenez do herói é um excelente atalho para a possibilidade de identificação por parte da criança. No espetáculo que criamos, cujo texto é uma reconstrução das diversas versões existentes, fazemos um jogo de três escalas: a do Polegarzinho, a dos humanos atores/personagens e finalmente a escala gigantesca. Polegarzinho vê-se assim lançado na sua aventura de reconquista do espaço afetivo vital – o regresso a casa dos pais – num mundo de gente grande. É um combate desigual que ele terá de vencer graças à sua astúcia, à sua força e à sua inteligência.
Acontece que, um certo dia, no decorrer de uma representação, precisamente na cena em que Polegarzinho enfrenta o terrível gigante no castelo, sucedeu um acidente. A mão do gigante, com uns bons quilos de peso e de um tamanho considerável, escorregou da mão do ator e abateu-se violentamente sobre o pobre menino. A marioneta desfez-se em pedaços… braços para um lado, pernas para o outro, a cabeça a pender na ponta de um fio. Uma cena muito triste! A morte do artista ao vivo. Subitamente instalou-se na sala um ambiente gelado e silencioso, partilhado por atores e público. Durante longos segundos não houve nenhuma reação. Finalmente algumas crianças começaram exprimir a sua angústia e os atores reagiram, recolhendo rapidamente os despojos e substituindo o menino morto por outro vivo – felizmente havia uma marioneta de substituição – e o espetáculo pôde prosseguir até à vitória final. Posso imaginar a angústia que as crianças sentiram. E imagino também que talvez os adultos tenham, por instantes, sentido a vulnerabilidade das suas vidas. Eis uma bela metáfora. Felizmente, as marionetas não morrem!
Lugares de apaziguamento
Este caminho que percorremos há já vinte anos dá muitas voltas. Andamos sempre à procura dessa linguagem sensível que nos permite voar até lugares bonitos onde podemos encontrar um certo apaziguamento. O final feliz. Através de uma forma de fazer teatro que não é facilmente rotulável. Um jornalista chamou-lhe teatro “com” marionetas, uma pequena subtileza, querendo com isto manifestar a sua estranheza perante um teatro que coloca em cena actores e marionetas em lutas ternas ou violentas pela supremacia cénica. Num confronto do homem com os seus duplos, com os seus fantasmas, com a sua condição, afinal. E não podemos deixar de sentir um pequeno orgulho quando pensamos que os nossos espetáculos foram vistos, ao longo destes anos, por muitas centenas de milhares de crianças e que talvez isso possa ter contribuído para que compreendessem um bocadinho melhor o mundo. E que fizemos os possíveis para que a sua primeira experiência teatral fosse uma BOA experiência. Eis o nosso contributo para a formação do que poderíamos chamar uma consciência em relação ao papel da arte, vital num mundo embrutecido no qual vamos natural e inconscientemente ganhando sucessivas camadas repelentes aos afetos e à beleza. “Existir é afrontar as forças do mundo” (José Gil) e fazer teatro é a nossa forma de nos situarmos nesse combate existencial.
João Paulo Seara Cardoso
Artigo escrito para o boletim SOLTA PALAVRA