A intemporalidade das marionetas
Isabel Barros*
O Futuro é um lugar mágico onde tudo ainda pode acontecer, e quanto mais passado temos mais mágico podemos imaginar o Futuro… Ao longo destes 26 anos de ligação ao Teatro de Marionetas, e ao trabalho do João Paulo Seara Cardoso (1956-2010), continuo a sentir que a intemporalidade da marioneta é a sua maior força, e talvez a sua maior capacidade de vencer o tempo, ou de o atravessar e se renovar. A marioneta, esse ser frágil e leve, contém em simultâneo esse contraste: a fragilidade e a força, a leveza e o poder, a vida e a morte.
A minha ideia de teatro de marionetas, é uma ideia de cruzamento nas disciplinas em que me movo: o teatro, a dança e o teatro de marionetas. Nesse cruzamento outras disciplinas são ainda convidadas, a música, a animação e o vídeo…sempre com vista a pesquisar e criar algo que ainda não existiu, daí o meu enorme fascínio pela criação de um teatro de imagens, é nesse lugar, o da fabricação de imagens que me encontro e me imagino. As marionetas, como disse Roman Paska, “constituem a vanguarda das artes cénicas”, devido ao espírito aglutinador de teatro de formas puras, de teatro visual, numa época em que o que se vê é o mais importante das nossas vidas. Acompanha os signos da linguagem contemporâneos e sempre com uma certa universalidade.
A marioneta é um instrumento teatral, um objeto, uma escultura. Pode ser figurativa, ter uma determinada carga teatral, ou ser um objeto abstrato em movimento, e através desse movimento ser tocante e inquietar. A marioneta pode ser uma personagem humana ou uma marioneta-objecto, em qualquer um dos casos as suas capacidades ilimitadas, potenciam a entrada no domínio do fantástico, do onírico. E aí estamos no Futuro. Através da marioneta o sonho, ou as imagens dos sonhos podem ser materializadas. A capacidade de voar de permanecer suspensa, de deslizar ou se desmontar e voltar a montar são realidades neste universo das marionetas ainda que através da ajuda dos atores e mesmo que estes estejam presentes e visíveis. Um corpo sem cabeça, uma cabeça que procura um corpo, uma mulher nua a correr com uma rosa vermelha gigante, muitos homens pequeninos todos iguais com chapéus de coco povoando o ar, um voo alucinado de uma marioneta que parece explodir de felicidade, tudo isto são algumas das imagens possíveis de encontrar nas peças criadas pelo João Paulo para o Teatro de Marionetas do Porto.
A ideia é perturbar os sentidos do espectador e assim criar um espaço-tempo para sonhar. A marioneta, na sua extraordinária condição mecânica, é possuidora de um gesto único, puro e essencial não acessível ao corpo funcional do actor. Na sua condição abstracta, material, imagética, oferece tantas possibilidades inesperadas de ressonância com as vidas reais. Estas configurações estéticas e simbólicas são convocadas para a cena teatral como representações do humano, assumindo formas que podem ir da máscara, ao robot, da marioneta ao manequim, sempre como intermediário para redesenhar as relações da vida e da morte, esse dilema humano subterrâneo ao gesto artístico.
As marionetas têm memória e na verdade não morrem. Perceber e ter passado, é na minha opinião o motor para a constante renovação, isso é a beleza das coisas e da vida. A existência de novos meios, de novas disciplinas, criou novas poéticas, essa renovação constante faz com que os dias não sejam iguais e criam futuro e permitem-nos sempre imaginar. Até porque, como dizia, Gaston Bachelard, “imaginar é aumentar o real em um tom”.
*Coreógrafa, encenadora, diretora artística do Teatro de Marionetas do Porto e do Museu das Marionetas do Porto