A dança das marionetas – Entrevista a Isabel Barros por Jorge Louraço Figueira

A dança das marionetas

Um rei de Chipre, apaixonado por uma estátua de marfim representando uma bela mulher, que ele próprio tinha esculpido, pediu a Afrodite que lhe enviasse uma mulher semelhante à estátua — conta Pierre Grimal no seu Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Um dia, depois de mais uma das romarias dedicadas à deusa, as súplicas foram finalmente atendidas: ao chegar a casa e beijar a estátua, o rei vê que a figura de marfim ganhou vida.

 

Das muitas lições a tirar deste mito, uma salta à vista, até desarmada: cada ser humano é em parte feito de artifício, imaginado pelos outros que o amam. O mesmo está patente na humanidade das marionetas, das articulações do boneco à manipulação dos atores. Não é à toa que uma das encarnações modernas deste mito antigo é a fábula de Gepeto e Pinóquio. Quando dançam e cantam, as marionetas ganham vida na nossa imaginação e adquirem a força material da palavra e da fantasia. Por isso, são imortais. Perduram para sempre os gestos delas. A posição do corpo, as entoações e a expressão fisionómica dão-lhes vida eterna. O movimento coreografado da marioneta é a homenagem devida à deusa do amor.

O Teatro de Marionetas do Porto foi fundado em 1988. Pela aritmética, faz trinta anos em 2018. Mas teríamos de somar todas as idades das suas figuras imaginárias para começar a contar a verdadeira história do grupo. No testemunho que serviu de base a este texto, recolhido em 2017, a propósito da estreia de Como um Carrossel (revisitação de um espetáculo anterior, Como um Carrossel à Volta do Sol, de 2006), Isabel Barros dá conta de alguns momentos cruciais nessa passagem do tempo: Terceira Estação, de 1994, o primeiro espetáculo que o João Paulo e a Isabel fizeram em parceria; Frágil, de 2011, acabado pela Isabel e coletivo imediatamente após o falecimento do João Paulo (em 2010); e Como um Carrossel, de 2017, cujo texto foi em parte inspirado nas filhas, então com nove e seis anos.

 

Que diferenças há entre esta e a versão original do Carrossel?

Esta versão de Carrossel teve várias alterações em relação ao original, começando pelo facto de a história ser colocada numa figura feminina e não num menino, passar a ser uma menina que chega ao mundo sem pais. Eu achei piada esta ideia de chegar à cena sem pais, de tomarmos conhecimento de uma criança de olhos arregalados, inquieta, mas como se já viesse com toda a informação necessária para chegar a um lugar só e capaz de o explorar. Não temos a figura da mãe e do pai ao longo da peça, nesta minha versão. Crio ou invento um casal no fim, porque a menina cresce e há alguém que será uma possibilidade de ser seu par. Esse casal poderá ser quase o gerador de qualquer outra coisa. E aqui mantém-se essa ideia do carrossel. Depois, havia muitas cenas que eu achei que se pegasse naquilo tudo, da forma que eu tinha pensado, acabava por ser muito exaustivo e optei por cortar o texto… o mais importante é que tudo o que está na peça se sintetiza naquelas quatro ou cinco frases finais… o que é a vida? É andar sempre às voltas, às voltas como um carrossel…

Frágil foi o último espetáculo em que o João Paulo trabalhou, e que tu terminaste, com a companhia. Como é que retomaste esse trabalho?

Quando o João Paulo adoeceu, estávamos a ensaiar no Balleteatro, no estúdio experimental, na Ribeira, e estava a dar-lhe imenso gozo esse espetáculo… Naqueles dois meses, os ensaios não foram tão normais como o habitual, mas depois, no final, quando o João Paulo morreu, praticamente uma semana, ou duas semanas depois, começamos logo os ensaios. Achei que devíamos acabar a peça, e foi muito bonito, porque foi um momento em que, de repente, todos nós estávamos a trabalhar para celebrar o João Paulo, e foi um sentimento muito forte de todos. Conseguimos levar o espetáculo até ao fim.

Nós chegamos de férias no final de julho, os quatro. Viemos de São Tomé…Foram as nossas últimas férias os quatro e foram absolutamente divinas com momentos inesquecíveis.

Tínhamos interrompido os ensaios porque estávamos de férias. Em Agosto, o João Paulo adoeceu… Em setembro íamos começar os ensaios, e começámos na mesma… Outubro ainda fomos a alguns ensaios, mas depois, a partir de certa altura, não era possível. Eu retomei em novembro, estreamos em janeiro. Foi claro para mim que tinha de continuar a obra do João Paulo. Acabar o espetáculo com os atores e continuar.

Aquilo que eu senti mais urgência era precisamente continuar e cumprir o sonho do João Paulo, abrir o Museu. As marionetas não podiam parar. Senti que de repente me caiu uma missão nos braços. De repente é quase como se te entregassem outro filho e tu… foi assim que eu senti.

Como é que vocês conciliavam os vossos projetos artísticos, o teu mais na dança e o do João Paulo mais no teatro?

Eu sempre estive nas marionetas como colaboradora, desde 1993, e sempre senti que era o projeto do João Paulo, e isso era muito bom, porque cada um de nós tinha o seu projeto. Isso era maravilhoso, porque nós tínhamos os nossos mundos, que se tocavam, porque o João Paulo ia dar aulas ao Balleteatro, tocavam-se num certo sentido muito interessante para lá, e tocavam-se para cá quando eu estava nas Marionetas, mas sempre em períodos específicos. Era muito forte a nossa cumplicidade artística, tínhamos abordagens distintas, o que enriquecia a nossa relação e colaboração. Falávamos muito do que estávamos cada um a fazer, do que fazíamos juntos e do que ainda queríamos e desejávamos fazer, sempre de forma muito divertida mas muito produtiva, foi uma experiência ímpar. As nossas diferenças, sobretudo na forma de nos relacionarmos com o mundo e com os outros, foram sempre um motor numa relação que fervilhava, e era sobretudo de grande admiração mútua e profundamente apaixonada.

Frágil é uma continuação dessa cumplicidade, então?

Esse espetáculo acabou por resultar em algo muito sensível. Acho que as pessoas sentiram. Eu lembro-me quando as pessoas foram à estreia ficaram muito emocionadas porque eu acho que sentiram, no fundo, alegria, mas também uma verdadeira tristeza… Havia ali uma coisa que passava pelo meio daquilo que tudo, não sei dar um nome a essa “coisa”, apenas sei que é como um poema de amor. No final, um ator fazia gestualidade a partir do texto e a atriz numa bicicleta em cima de outro ator a dizer esse texto. O João Paulo já tinha pensado usar a bicicleta porque eu sempre andei muito de bicicleta. E isso era uma coisa inspirada numa cena familiar que ele tanto adorava e tanta piada achava… No início do espetáculo e no fim havia essa bicicleta.

O TMP continuou depois da morte do João Paulo, graças ao trabalho dos membros da companhiae à dedicação de Isabel Barros. O amor e cumplicidade entre o João Paulo e a Isabel, juntos desde 1993, deu frutos na vida e na arte, com duas filhas, Mafalda e Francisca, e dezenas de projetos em comum, desde Terceira Estação, de 1994, até ao Museu das Marionetas do Porto, inaugurado em 2013. É sempre possível distinguir a vida privada das carreiras artísticas, mas o trabalho de criação de espetáculos alimenta-se muitas vezes de episódios do quotidiano familiar, por sua vez iluminados pelas obras de arte. Como a própria Isabel relata, alguns dos espetáculos dirigidos aos mais novos foram escritos à mão, enquanto as filhas brincavam, “e os papéis espalhavam-se por entre legos, lápis, peluches e outros brinquedos”: Óscar, A Cor do Céu, Como um Carrossel à volta do Sol ou Cinderela estão nesse conjunto de “textos cheios de luz, de jardins, de diálogos fabulosos”.

Já os trabalhos destinados a um público adulto, peças “lunares” como Nada, Macbeth ou Máquina-Hamlet, foram muitas vezes trabalhados “noites dentro, por vezes numa espécie de inquietação”.

Como começou essa vossa cumplicidade?

Em 1993, comecei por coreografar as coristas do Vai no Batalha, foi uma primeira colaboração, sem ter sequer assinado esse trabalho, mas estava a começar a namorar com o João Paulo e ele pediu-me para coreografar as “Silicone Dancers” . Foi assim o primeiro momento. Em 1994, fizemos o 3ª Estação, a primeira criação minha e do João Paulo, e o espetáculo de grande viragem, pelo cruzamento fantástico entre a dança e as marionetas. Seguiu-se Joanica-Puff, IP5, Máquina-Hamlet… e, até 2010, acabei por estar sempre nas criações, como co-criadora em duas, como coreógrafa, responsável pelo movimento e ainda, muitas vezes, como conselheira artística. Como atriz, entrei no 3ª Estação, de 1994, e na Máquina Hamlet, de 1997. Mas na Máquina Hamlet, que também foi outro espetáculo que nós encenámos em conjunto, eu e o João Paulo, eu só entrei na segunda versão, para substituir uma atriz. O 3ª Estação acho que é o resultado de uma paixão, sinceramente. Tínhamos que fazer aquilo, tínhamos de materializar, de alguma maneira, uma coisa que… eu acho que foi um espetáculo… uma urgência… foi uma espécie de explosão… de perceber que aquilo fazia sentido e extravasava a questão de estarmos juntos (desde 1993) e a viver aquele momento juntos.

 

Como foi a criação do 3ª Estação?

No 3ª Estação eu manipulava uma marioneta do meu tamanho, que foi construída pelo João Paulo. A marioneta era muito pesada, era a cabeça e a estrutura. Eu dizia sempre: —João Paulo, desculpa, isto pode pesar menos, tens que descobrir uma forma. Ele depois conseguiu, esvaziou a cabeça e conseguiu, ficou mais leve, resultou muito bem. Eu dei um nome à marioneta, chamava-lhe Elena Libonati. Um dia acordei e disse: — João Paulo, eu já sei como ela se chama. A maior parte das vezes dançava com ela. Às vezes ela elevava-se, depois ficava a cabeça à altura da minha cabeça, outras vezes estávamos em contracena, e depois em contracena também com outras marionetas que estavam lá, pequeninas.

Como é que chegaram a essa dança das marionetas — que de certo modo parece resumir a vossa colaboração?

Esse espetáculo foi mesmo muito de experimentação, foi mesmo assim de partir pedra. Fazer experiências com isto, com aquilo. A primeira experiência de todas, a que acabou por dar origem a esse espetáculo foi mesmo o João Paulo a colocar música e a pedir-me para eu experimentar com o meu casaco, o meu sobretudo, que eu tinha em casa, um sobretudo muito comprido, preto e com uma cabeça que trouxemos do teatro, uma cabeça de uma marioneta qualquer, que era mais ou menos do meu tamanho e de repente vimos ali uma possibilidade de explorar, mas a uma escala que ele ainda não tinha feito, a relação dessa escala com a escala humana, e essa relação com um corpo que se movia de uma forma diferente. O João Paulo tinha levado para casa, já a pensar: — Nós podíamos fazer alguma coisa juntos. E, estávamos lá em casa, e de repente o João Paulo disse: —Isabel podias fazer uma improvisação… põe o teu casaco, aquele teu casaco, o sobretudo de Paris. Um sobretudo que eu usava, enorme, quase a chegar ao chão. E ficamos assim não sei quanto tempo a fazer experiências com aquilo e de repente aquilo… pronto, a partir daí depois começamos a ir para o estúdio, levamos várias coisas, vários materiais, e com os outros atores e bailarinos fizemos imensas experiências . O João Paulo era muito ligado às cenografias, portanto, rapidamente começou a pensar no espaço. O espaço acabou por definir a questão das várias escalas que o espetáculo tinha. Por exemplo marionetas mais pequenas que apareciam num plano mais atrás, como se houvesse janelas, aberturas, pequenos mundos. Quem fez parte desse espetáculo foi o Igor Gandra, o João Paulo, o Carlos Magalhães, eu e a Vera Santos.

O trabalho do João Paulo continua presente nas criações, sempre que iniciam um novo processo?

O João Paulo está sempre presente através do que se vai criando, porque há uma escola que fica. Manifesta-se na técnica, na forma como os espetáculos se constroem… é na qualidade de cada espetáculo, que acaba por ter uma marca, mesmo sendo coisas já bastante diferentes, que se calhar nunca seriam feitas pelo João Paulo assim, mas percebe-se que são de uma mesma origem, é uma escola. Os atores têm uma herança do trabalho que foi feito de experimentação. A transmissão vai se fazendo de uns para os outros, vai-se passando os traços fundamentais, a necessidade de experimentar e inovar, de não ficar fechado numa certa técnica, por exemplo, muitas coisas, um sentido estético, no fundo, uma forma inquieta perante o mundo que se expressa através das criações.

Em 2018, ao longo do ano, o TMP apresentará doze espetáculos, um por mês: Fausto, Óscar, Kitsune, Arcano, Carrossel, Wonderland, Cinderela, Frágil, Nunca, Pelos Cabelos, Barba Azul, e Os 3 Porquinhos. Estes trabalhos são também estações de amor. À medida que se recapitula o repertório do grupo, vai-se desenhando uma nova cronologia, virada para o futuro. Com essa recapitulação ficam também à vista também os contornos de uma vida em comum, na cidade do Porto, dedicada ao teatro e à dança — do casal, dos amigos, dos parceiros, dos alunos, dos espectadores. A criação artística depende da cumplicidade com as técnicas e a tradição, da ligação aos outros criadores, aos espaços físicos e à cidade em que nos movemos, e, talvez mais que tudo, depende do vínculo real às pessoas que amamos.

Jorge Louraço Figueira