Sinais de Cena

João Paulo Seara Cardoso : Teatros com marionetas

Entrevista por: Paulo Eduardo Carvalho
Isabel Alves Costa

Não obstante o encantamento intrínseco de muitas das “criaturas” que povoam os espetáculos de João Paulo Seara Cardoso , o fato é muitos dos trabalhos por si realizados para o Teatro de Marionetas do Porto, sobretudo aqueles criados a partir de meados dos meados noventa, ilustram de forma eloquente aquilo que se veio tornando uma evidência: que o que define a existência de uma marioneta depende mais do modo como cada objeto, à partida, inerte é manipulado e utilizado do que do seu aspeto ou construção. Daí que, para lá da imaginação e competência dos “artesãos” responsáveis pela criação das marionetas, ele exija idêntico empenho e talento dos intérpretes que as investem com sugestões de vida. Embora mantendo sempre uma especial atenção ao público infantil, o Teatro de Marionetas do Porto tem proposto espetáculos assumidamente interpeladores da nossa comum vivência contemporânea, através de variadas aproximações a um teatro de atores, à arte de contar histórias e à própria performance art, em experiências felizes de fertilizações cruzadas entre disciplinas e universos artísticos. Foi para nos falar sobre o percurso do mais bem sucedido projeto português de teatro “com” marionetas que decidimos conversar com João Paulo Seara Cardoso. Na entrevista realizada a 27 de setembro de 2005, esclareceram-se trajetos formativos e opções estéticas, debateram-se alguns pronunciamentos artísticos e recuperaram-se memórias e experiências.

Numa primeira tentativa de encontrar alguns dados fatuais sobre o teu percurso artístico, consegui saber que nasceste em 1956, que estudaste no Liceu D. Manuel, no Porto, que chegaste a frequentar um curso de Engenharia, que terás estado ligado a algo a que se chamou o Teatro Amador de Intervenção… Gostaríamos que nos falasses um pouco destes primeiros passos e das tuas primeiras aproximações às realidades culturais e teatrais da cidade do Porto.

Eu comecei a fazer teatro quando andava na universidade. E acabou por ser o teatro que me afastou da universidade. Porque, um dia, eu ia a entrar na Faculdade de Engenharia – nas antigas instalações da Rua dos Bragas – e vi um cartaz que dizia “Abertura de Novos Cursos no Teatro Universitário do Porto” (TUP). E eu inscrevi-me no curso, o que foi a minha perdição, porque eu já ia quase no 4.º ano. De qualquer modo, o elemento mecânico é uma coisa que continuada relacionada com a minha atividade e com o meu pensamento. A escolha das marionetas terá tido muito a ver com o meu fascínio pelas mecânicas teatrais. Foi aí, nesse curso no TUP, que eu encontrei aquele que eu considero o formador da minha vida, o João Coimbra, que vinha de uma escola de Bruxelas, uma escola grotowskiana ortodoxa, e que aplicava esses conhecimentos e as suas convicções também de uma forma muito concreta, muito rigorosa e exigente. Ele tinha até uma companhia que se chamava Teatro Laboratório. É assim que eu formo a maior parte das minhas ideias teatrais e das minhas próprias convicções, sobretudo, em relação à questão primordial do ator e da sua formação.

Estamos a falar de um curso de quanto tempo?

De três anos. No terceiro ano, quando se fez o Sonho de uma noite de Verão, é que a experiência descambou um pouco porque nunca se chegou a um resultado concreto… O espectáculo nunca chegou a acontecer. O curso começou nas antigas instalações do TUP, onde hoje é o Conservatório de Música – onde eu conheci outra pessoa fantástica, o Correia Alves –, e passou depois para o Quartel do CICAP, naquilo que viria a ser o famoso “barracão” do TUP. Entre outras confusões, a dada altura, houve um grande conflito entre a direcção do TUP e o João Coimbra, porque ele tinha a convicção de que era preciso formar os actores por dois ou três anos antes de poder fazer um qualquer espectáculo, e a estreia foi sendo protelada, até que o conflito se agudizou de forma irreversível. E aquelas pessoas que eram fiéis seguidoras das ideias e das práticas do João Coimbra – éramos apenas sete ou oito –, acabaram em casa dele a continuar a sua formação de actor.

Estamos a falar, mais ou menos, de que anos?

Nunca sei os anos… Mas sei que essa experiência foi a coisa mais marcante que me aconteceu. Depois disso é que, por convite do Mário Moutinho – porque eu, entretanto, tinha escrito uma peça de teatro para crianças –, chego ao Teatro Amador de Intervenção (TAI), para fazer uma encenação. O TAI era um grupo muito importante nesta cidade, no qual nunca se fala, um coletivo enorme e muito interventivo que tinha diversas secções: teatro para adultos, teatro para crianças, um grupo de musica popular – que veio a dar o Vai de Roda –, e um núcleo audiovisual. E fazia uns fins de semana culturais, nos anos logo a seguir à Revolução, que, na Escola de Belas Artes, juntavam imensas pessoas: durante três dias em regime non-stop passavam-se filmes, fazia-se teatro para crianças e adultos, tocava-se música…

Mas, então, se quando entraste para o curso do TUP estavas quase no quarto ano de engenharia, deverias ter à volta de 21 ou 22 anos, o que apontará para os anos de 1977 ou 1978…

Foi exatamente 1978! Aliás, 1978 foi o Ano Internacional da Criança, em que houve muitas, muitas atividades em que o TAI esteve envolvido. Foi um ano louco…

E quem animava o TAI?

O TAI era conhecido como “o grupo dos médicos”, porque tinha lá vários estudantes universitários, sobretudo de medicina. Mas era sobretudo o Mário Moutinho e mais duas ou três pessoas. A dada altura, eu também acabei por ir para a direção. Foi precisamente porque existiam muitos universitários no TAI que se começaram a formar, a casar e a ter filhos, deixando de ter disponibilidade para a ação cultural e para o teatro, que ficaram só algumas pessoas, já nessa altura, muito interessadas por marionetas. E o Teatro de Marionetas do Porto acabará por nascer de um núcleo de pessoas que se especializam em marionetas, ainda no TAI, juntamente com alguns importantes criadores como a Rosa Ramos e o João Loio. Andámos ainda uns anos num registo semi-profissional, já que eu e o Mário éramos também animadores culturais no FAOJ, até que eu, a dada altura, decidi avançar. É preciso que se perceba que a profissionalização nessa altura era difícil e nós estávamos numa área teatral estigmatizada. Eu via os meus colegas, do teatro, aqui no Porto, com uma vida muito esforçada. Os anos oitenta foram muito difíceis para o teatro no Porto. E eu preferia ter aquela atividade dupla, também como animador cultural, que me deixava um grande espaço de liberdade.

Mas o que é que, no meio de todas essas experiências, te conduziu às marionetas?

Eu penso que terá sido esse ímpeto criativo que houve em 1978, no Ano Internacional da Criança, em que nós fizemos espetáculos como cogumelos: inventávamos umas tendas e íamos construindo os espetáculos à medida que os íamos apresentando. E foi aí que surgiram naturalmente as marionetas… Tudo aquilo era feito em condições um pouco precárias. Tínhamos uma aparelhagem de som muito rudimentar, um pequeno pórtico que se montava no largo de uma aldeia ou num salão de bombeiros, e apresentavamos espetáculos que tinham uma grande interação com o público, com os miúdos. Íamos construindo os espetáculos aos poucos, circulávamos imenso. Todos os fins de semana, saíamos numa carrinha para fazer espetáculos, por todo o lado, três e quatro por dia. Foi uma experiência verdadeiramente de animação sócio-cultural, que me marcou muito.

Mas não fizeste também um curso de teatro na Seiva Trupe?

É verdade… O curso na Seiva Trupe foi ainda anterior ao do TUP. Eu já estava na universidade – exatamente, é isso mesmo – quando fui frequentar o primeiro curso de teatro pós-revolução, que houve no Porto, frequentado por cento e tal alunos, e que decorria na Cooperativa Árvore, tendo como professores o Júlio Cardoso e, mais tarde, o Rui Madeira. Esse curso foi muito engraçado… Estavam lá pessoas, ainda muito ingénuas, mas que já sonhavam fazer teatro. Formaram-se núcleos duros dentro dessa mais de uma centena de pessoas, que representavam as diferentes correntes estéticas do teatro: havia os brechtianos, havia os artaudianos – que faziam representações a chicotearem-se, uns nas costas dos outros, que resultavam, claro, de teorias mal absorvidas –, havia outros que faziam teatro mais numa perspectiva revolucionária, mais colados à prática da Barraca, que era, então, o grande modelo. Daí que, quando se chegou à mostra final, houvesse ali uma enorme variedade das grandes correntes universais do pensamento teatral. Foi fantástico. Esse curso terá durado cerca de um ano… e dele saíram muitas pessoas que viriam mais tarde a fazer teatro em companhias profissionais.

E, já agora, tu estavas em que corrente?…

Estava numa corrente que tinha a ver com um certo realismo poético… Apresentamos um trabalho a partir de um texto da Yvette Centeno, uma pequena peça sem palavras, uma didascália, de que já não me lembro o nome. Muitos anos mais tarde viria a encontrá-la, quando apresentamos o Exit no Acarte- ela acabava de ser nomeada diretora- e falámos longamente sobre isso e sobre o facto de ter sido com um texto dela que eu pisei o palco pela primeira vez na vida.

E o teu encontro com o mestre António Dias?

Essa é uma memória que eu tenho mais presente. Eu trabalhava no FAOJ, onde era responsável por áreas como o teatro de marionetas, a etnografia e a música. Foi nessa altura que viajei por todo o país, sobretudo pelo Norte, tendo tido a oportunidade de conhecer as mais importantes tradições teatrais e para-teatrais, como as Bugiadas de Sobrado, o Auto de Floripes, as mascaradas de Bragança e Lamego, as Festas dos Rapazes, a Serração da Velha e o Enterro do Judas, etc. Nessas andanças, conheci pessoas fantásticas, como o Benjamim Enes Pereira e o Ernesto Veiga de Oliveira… Hoje reconheço que o contacto com o teatro popular bateu fundo em mim. E é por isso que eu ainda hoje não compreendo que haja pessoas de teatro, interessadas em teatro, que desconheçam as manifestações teatrais portuguesas de inspiração popular. Costumo dizer que é tão importante conhecer o Hamlet como o Auto de Floripes. São celebrações teatrais comunitárias que, nesse sentido, se aproximam dos ideais do teatro grego. Eu acho que o conhecimento dessas tradições é fundamental para se criar uma verdadeira consciência teatral numa perspectiva cultural. Um dos problemas do teatro e da dramaturgia portuguesa é precisamente a falta de uma identidade. Nós não temos um teatro identitário, do ponto de vista de cultural, ao contrário do que acontece em Itália, em Espanha, ou em França, tanto a nível dos textos como das formas. Mas voltando à tua pergunta… no meio de todas estas experiências fascinantes o Mestre Francisco Esteves diz-me que existia ainda um mestre bonecreiro que vivia em Lisboa. E que seria o último da linhagem dos bonecreiros itinerantes. Claro que fui logo a Lisboa conhecê-lo e ele revelou-se uma pessoa encantadora, mas acontece que, nessa altura, estava rodeado de jovens como eu, todos ansiosos por aprender a chave do sucesso dos robertos. E o Mestre António Dias, revelando-se um verdadeiro guardião da tradição, não se dispunha a ensinar os seus segredos ao desbarato.

Mas em que é que se traduziam esses “segredos”?

O primeiro segredo dos robertos é a palheta: se ele não mostrar a palheta a ninguém, aquilo permanece um segredo e não se sabe qual é o “truque” da voz do bonecreiro. Segundo: a movimentação dos robertos é incrivelmente exigente e há mesmo algumas sequências que não se percebe como são feitas, parece que há fantasmas dentro da barraca. E, finalmente, ninguém se atrevia a fazer um teatro de que ele era o último representante sem o seu consentimento. Acompanhei-o em Lisboa durante dois ou três dias, assistindo aos espectáulos e, de regresso ao Porto, trazia a convicção plena que teria de fazer os Robertos. Era aquele “o teatro” que me interessava. Um verdadeiro teatro popular, universalista nos temas e na forma de comunicação.. E fiz, ensaiei durante alguns meses, só uma peça, que eu considerava mais fácil, chamada Tourada, e que apareceu integrada num espetáculo de rua promovido pelo TAI, no âmbito de uns encontros de teatro para a infância. Esse espetáculo assentava numa recolha de diversas tradições dos saltimbancos e dos bonecreiros portugueses, no meio do qual surgia a minha representação de robertos. O espetáculo acabou por estrear no espaço da Gulbenkian de Aveiro – no auditório, portanto, no interior, por exigências da programação desses encontros –, e o Mestre Dias estava na plateia. No fim, deu-me os parabéns, comovido. E eu então perguntei-lhe se ele não me queria ensinar aquilo, mesmo a sério. Ele veio para o Porto durante um mês, todos os dias trabalhávamos um pouco, eu ia desvendando os segredos daquilo e fui também fazendo um levantamento, que deveria um dia publicar, sobre a vida dele. Passado algum tempo, depois de muita insistência, porque aquilo também é uma questão de repetir muitas vezes, acabei por fazer o repertório completo dos robertos.

O que faz de ti o nosso único herdeiro da tradição dos robertos! Mas o que é que acontece entre esse encontro decisivo e a formação do Teatro de Marionetas do Porto, em 1988? Porque tu ainda acrescentarás à tua experiência outras formações mais sistemáticas, através das tuas passagens pelo Institut National d’Éducation Populaire, em Marly le Roy, e pelo Institut International de la Marionette, em Charleville-Mézières.

Bom, logo a seguir à aprendizagem dos robertos, levado por um certo idealismo itinerante, pego no meu dois cavalos, onde instalei um colchão para dormir, e passo largos meses a fazer espetáculos em todos os largos de aldeia e vila que encontrava em Portugal. Se calhar tinha a necessidade de vivenciar a experiência dos antigos bonecreiros. Era engraçado: chegava a um local, escondia o carro para não saberem que eu era “rico”, fazia a representação e no final saía da barraca a pedir dinheiro com o fantoche virado ao contrário. Tinha piada porque o fantoche que pedia dinheiro era o diabo e as pessoas ficavam um bocado atrapalhadas… era pouco cristão! E é nessa altura que eu, também, seguindo alguns dos métodos usados pelos etnólogos, tentava em cada localidade saber da existência de algum bonecreiro, visitava-o, tirava-lhe fotografias, falava com ele, fazia o seu registo.

Fizeste, então, um trabalho que era simultaneamente de animação e de pesquisa?

Exacto. E é nesses anos também, que eu faço, mercê de um acordo luso-francês de cooperação, muitos e belíssimos cursos em França, sobretudo no Instituto Nacional de Educação Popular. Foram diversos cursos, de um, dois ou três meses, de teatro de marionetas, de cinema de animação, de teatro de máscaras, de animação sócio-cultural, com belíssimos professores. E quando já estava muito ansioso de uma formação especializada, inscrevi-me em dois cursos do Instituto Internacional da Marioneta, um sobre encenação, em torno da montagem do Fausto, de Christopher Marlowe, e um outro em que trabalhei com o Jim Henson. Esse curso com o Jim Henson foi fantástico. Nessa altura eu estava a fazer programas de televisão de uma forma perfeitamente empírica…com uma belíssima equipa- o Jorge Constante Pereira, o Carlos Dias, o Sérgio Godinho, e tinha que escrever, encenar, dirigir, interpretar… tudo! E o curso com o Jim Henson surge justamente numa altura em que eu estava muito precisado de formação numa área que ele dominava exemplarmente. Ele era, então, o grande precursor mundial das marionetas em televisão. Eu recordo-me, na altura d’Os marretas [The Muppet Show], que muita gente em Portugal, parava tudo para ver Os marretas! Por isso, com a enorme admiração que tinha por ele, poder passar ali mês e meio a trabalhar com ele, foi uma experiência inesquecível. Ele gostou tanto de mim que me convidou para uma colaboração. Era um projeto que ele tinha de uma nave espacial que pousava em diferentes países, e eu ficaria responsável pela realização do episódio português. Ainda fizemos um primeiro encontro de produção em Madrid, para discussão do guião, mas passados alguns meses o Jim Henson morreu e o projeto nunca mais se concretizou.

Todas essas experiências de televisão – A Árvore dos Patafúrdios, Os Amigos de Gaspar, Mopi e NoTempo dos Afonsinhos – são anteriores à formação do Teatro de Marionetas do Porto?

Nessa altura, entre o fim do TAI e o princípio do Teatro de Marionetas do Porto, há todas essas coisas à mistura. Digamos que este grupo de pessoas, sobretudo eu, o Mário Moutinho e mais dois ou três, fomos fazendo tudo isto, montando peças de teatro, fazendo programas de televisão. É a altura das minhas grandes viagens a África, sobretudo ao deserto do Sara, que me marcaram bastante. Mas é, sobretudo, após o último dos programas de televisão, O tempo dos Afonsinhos, que o Teatro de Marionetas do Porto começa a sério.

Mas quando é criado o Teatro de Marionetas do Porto em 1988, a tua atenção já não é partilhada com a televisão?

O Teatro de Marionetas do Porto tem uma data simbólica de formação: é o dia da estreia do Miséria, no âmbito de uma edição do Festival Mundial de Marionetas, a que a Isabel Alves Costa assistiu, justamente em Charleville-Mézières, – e que foi uma estreia memorável, com transmissão em direto para a TSF, em Portugal. Foi aí que pela primeira vez se utilizou o nome da companhia, para participar no Festival sem dar aquele ar de “amadores”. É também por essa altura que é alugado o Teatro de Belomonte. Parte dos ensaios do Miséria já têm lugar no Teatro de Belomonte, ainda antes das obras. Por isso, o Miséria é realmente o início de tudo: é o espetáculo que estreia o Teatro de Belomonte, é o espetáculo que nos dá uma certa visibilidade internacional, porque aquela estreia correu muito bem, e é o nosso espetáculo histórico. Aliás, já o faço há tantos anos que costumo dizer que o espetáculo, tal como o personagem Ti Miséria, está condenado à eternidade!

Ultrapassado esse “incidente” associado à criação da companhia, para a inscrição num festival, como é que depois se estrutura o Teatro de Marionetas do Porto?

Numa primeira fase, em que ainda não havia subsídios do Estado, a nossa atividade foi-se fazendo ao sabor das encomendas, das apresentações para que éramos convidados. Mas, em 1993, com a montagem do Vai no Batalha, as coisas ficaram mais sérias: começámos a ter uma grande visibilidade na cidade do Porto, o subsídio de montagem do Vai no Batalha tinha-nos sido recusado e, depois, por causa do êxito do espetáculo – em cena, entre maio e novembro –, foi-nos atribuído, aliás, de uma maneira muito estranha… E é também com aquele espetáculo que eu faço uma reflexão sobre o caminho a tomar, que até então, talvez, ainda não tivesse feito…

Mas em 1990, o II Festival Internacional de Marionetas do Porto já incluiu uma retrospetiva dos espetáculos do Teatro de Marionetas do Porto, com Teatro Dom Roberto, de 1983, Contos de aldeia, de 1985, Entre a vida e morte, de 1988, e Vida de Esopo, de 1989…

Tudo isso eram espetáculos herdados do TAI que passaram para o património do Teatro de Marionetas do Porto.

O Vai no Batalha foi o vosso primeiro espetáculo assumida e conscientemente dirigido a um público adulto?

Antes, já tínhamos feito umas experiências fascinantes, fascinantes e iniciáticas, para nós e para o público, no espaço do antigo café-teatro do Realejo, na Ribeira. Nunca ninguém nesta cidade tinha visto ou acreditava que havia marionetas para adultos. Não havia nenhuma companhia, não havia tradição, não havia ainda o Festival – cuja primeira edição é só em 1989 –, não havia nada. Talvez já tivessem passado pelo Porto umas marionetas chinesas, qualquer coisa de tradições orientais. E nós, num regime muito livre, durante a semana, escrevíamos os textos e ensaiávamos e, ao fim de semana, representávamos no café-teatro do Realejo, com grande êxito. Coisas muito “anarcas”, muito próximas de uma lógica de cabaré, muito fragmentadas, politicamente incorretas… Mas foi aí que começamos a alimentar a possibilidade de vir a fazer teatro de marionetas para adultos. Estas experiências primitivas são feitas no espaço do café-teatro, no último andar, enquanto que o Entre a vida e a morte, que já é uma experiência mais elaborada, mais trabalhada, é apresentado no novo café-teatro, que se chamava o “Rés do chão”. Mas é justamente depois de todas estas experiências díspares que se dá a nossa aposta mais assumida na dimensão de um teatro político: o Vai no Batalha. O que é que nós queríamos fazer com aquele espetáculo? Estava então instituída em Portugal uma terrível premissa de conceção do teatro que consistia em elevar o teatro de revista do Filipe La Féria, com o Passa por mim no Rossio, à condição de “teatro nacional”. O que acontecia com o entusiástico apoio do então Secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes, que manteve o espetáculo em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, durante largos meses, fazendo-o depois viajar até ao Teatro Nacional S. João. Foi também nessa altura que as companhias de teatro foram avaliadas não pelo valor do seu trabalho artístico, mas sobretudo por um critério altamente perverso: o número de espectadores que fossem capazes de atrair. Daí que o nosso espetáculo tivesse sido uma tentativa de, usando a mesma fórmula da revista, fazer um teatro político, anti-cavaquista, anti-“teatro nacional obrigatório”, aquilo a que nós chamávamos, num quadro da peça, o “Tenório”. Era um quadro muito engraçado em que o Santana Lopes estava a dormir na sua cama principesca e um busto de Chopin, que estava na cabeceira, se começava a agitar e dizia-lhe com voz ameaçadora: “Santana, Santana, porque andas a dizer que eu escrevi sonatas para violino?”, e massacrava-o sem dó nem, piedade. Chegava então o La Feria gritando com sotaque hiper lisboeta que adorava “teatro com muita cor, muitas lantejoulas, muitas entradas pela direita, muitas saídas pela esquerda,” etc… e havia um célebre diálogo com o Santana Lopes, em que o encenador tentava convencer o Secretário de Estado a obrigar toda a gente deste país a ver o seu próprio teatro, que se chamaria “teatro nacional obrigatório”. Bom, havia muitos mais quadros… o mais famoso era o do Fredo Brilhantinas, o “arrumbador de biaturas ligeiras”. De repente, esse ato que eu considerava político e de oposição ao estado do país, coincidente com a “política do alcatrão” e o desenvolvimento a qualquer preço, torna-se um ˆxito tal que essa consciência crítica começa a diluir-se. Consequência também dessa grande força do humor, que consegue inclusivamente que um espetáculo tão claramente político como era o Vai no Batalha conseguisse ser apreciado por pessoas que não alcançavam que ele estava a criticar o próprio sistema em que acreditavam. E esse efeito desiludiu-me muito: de repente, ver o Teatro de Belomonte cheio de pessoas nas quais eu não me reconhecia… E aí eu percebi que não queria fazer teatro de massas. Por isso é que a seguir, rompendo com tudo isto, quando toda a gente insistia comigo e nos convidava para viajar com o espetáculo pelo país, e no meio de muitas discussões,– o Mário Moutinho ainda hoje conta essa história –, eu entrei numa loja, na rua de Belomonte, comprei um machado, entrei no teatro, e anunciei: “Pessoal, acabou a discussão sobre se isto vai para fora ou não”: E fui furiosamente destruir o cenário à machadada! Ficou tudo reduzido a tábuas e o Vai no Batalha morreu ali. Ficou o mito…Por isso é que o espetáculo seguinte foi uma experiência radicalmente distinta e talvez o mais experimental que fiz na minha vida. Com a colaboração da Isabel Barros, quis pesquisar o que poderia resultar do cruzamento das marionetas com a dança. Construímos marionetas que se adaptavam ao corpo do bailarino, construímos um novo espaço cénico que nunca antes nos tinha passado pela cabeça, utilizando o espaço de forma ampla, abandonando os esconderijos para os marionetistas, colaborámos pela primeira vez com um músico italiano, o Roberto Neulichedl, com quem ainda hoje trabalho, que na altura fez uma música in loco, também ela muito experimental e adaptada a uma construção progressiva do espetáculo. E de tudo isto resultou o 3ª Estação, estreado em 1994, num festival na Alemanha. Foi o primeiro espetáculo experimental da companhia, que assumidamente buscava novas formas de construção e representação. E que teve uma carreira muito interessante, no Acarte, em Lisboa. Foi com este espetáculo que eu acho que houve uma escolha decisiva em relação à estética a seguir no futuro. Talvez tenha sido a primeira vez que senti que o que eu queria, vindo da tradição, era encontrar princípios de modernidade e de contemporaneidade no teatro de marionetas, porque sentia que era esse o meu papel e o meu caminho.

Como é que se vinha estruturando a formação de manipuladores e de outros intervenientes na criação dos espetáculos?

De uma forma muito natural. Fazendo dos espetáculos objetos, simultaneamente, de criação e de formação. Ainda hoje, o processo de formação dos nossos intérpretes é um processo de contágio, de modo a que, ao longo da criação do espetáculo, possam adquirir a aptidão necessária, mesmo técnica, para lidar com as marionetas. Nunca se fez um esforço especial. Ou, se preferirem, há sempre um esforço especial, porque cada espetáculo nosso, para o bem e para o mal, implica uma técnica nova. Porque nós fazemos um tipo de teatro em que a técnica determina a estética. Se, por exemplo, a marioneta é de varas, pesa 1 Kg e mede 80 centímetros, há um tipo de espaço que ela vai conquistar, uma movimentação que nós vamos descobrir e, consequentemente, uma dramaturgia que é determinada pela forma como a marioneta se movimenta, pela poética de espaço que ela sugere.

A partir de determinada altura, tu começas a privilegiar muito a manipulação ao vivo, insistindo na presença do corpo dos próprios intérpretes e, assim, rompendo com uma certa “magia” associada ao teatro de marionetas.

É verdade. O Vai no Batalha era, a esse nível, ainda muito “tradicional”. O Capuchinho Vermelho, por exemplo, já tinha sido uma experiência diferente, com um trabalho de composição de personagem, muito influenciada por uma vaga ao nível da comunidade dos criadores de marionetas traduzida numa nova tendência de “teatro de objetos”. Mas essa magia de que falas é o ponto crucial da grande revolução que abalaria as premissas filosóficas do teatro de marionetas e que ocorreram a partir dos anos 50. Quando o “manipulador” passa a estar à vista do público, rompendo uma conceção de séculos, o mistério da vida das marionetas é revelado ao espectador… aparentemente. Porque, quanto a mim, a ilusão que se pretende criar de vida própria da marioneta passa a ser, com a presença do ator, um mistério muito maior. Porque já não vemos só a vida. Estamos perante a vida em confronto com a morte. A tal existência efémera da marioneta, uma metáfora de nós próprios. Claro que isto põe problemas complicados ao nível do espaço cénico. Para mim tratou-se, a partir de certa altura, de encontrar a forma de organizar o espaço de representação e de encontrar um lugar onde pudessem coexistir os atores e as marionetas que melhor se adaptasse à estética que queríamos prosseguir.

Nesse tipo de evoluções e de inflexões, parece ter tido muita importância a tua presença regular em festivais internacionais de marionetas, cruzando-te com experiências muito diversas. A possibilidade de uma presença tão regular em contextos internacionais, desde tão cedo, é uma oportunidade relativamente rara para um criador teatral português.

Os Festivais Mundiais de Marionetas foram, a dada altura – e a Isabel sabe bem disso, – um verdadeiro mostruário do melhor que se fazia no mundo. E viam-se coisas extraordinárias. Foi aí que eu tomei contacto com todos os pensamentos teatrais relacionados com marionetas, sem dúvida. Os mais diversos, das mais diversas elaborações e formulações, desde o teatro de objetos, que vive puramente da animação de formas, objetos e utensílios do quotidiano, até fórmulas elaboradíssimas, como os espetáculos do Philipe Genty.. Mas havia de tudo, desde a intimidade do teatro de marionetas feito para vinte ou trinta pessoas, com pequenas caixinhas de fósforos mexidas em cima da mesa, até ao grande teatro, com enormes recursos, como por exemplo uma versão do Tristão e Isolda que lá vi, encenada pelo Alain Recoing. Esses primeiros anos foram anos fabulosos. E, principalmente, depois da estreia do Capuchinho Vermelho e do Miséria, no festival, eu percorri a Europa toda com esses espetáculos, e como eu tinha todo o tempo do mundo, em vez de ir aos festivais só para fazer as representações, ficava lá mais quatro ou cinco dias, via os outros espetáculos, conhecia os criadores, falava com eles, em ambiente de verdadeira tertúlia artística. Tudo isso foi para mim importantíssimo. Conheci profundamente o Roman Paska, que viria depois a ser o diretor do Institut International de la Marionnette, um artista admirável, tanto do ponto de vista da prática como do pensamento. Tudo isso foi decisivo para uma certa evolução pessoal. Hoje em dia, as coisas mudaram muito. O grande boom da criatividade no teatro das marionetas acabou, extinguiu-se, pelo menos aquela chama viva, e é uma arte que, do ponto de vista da criatividade, da emergência de novas tendências, está hoje num certo declínio.

Mas, então, a declaração do próprio Roman Paska , citada por ti noutras ocasiões, de que esse género de teatro seria a grande forma teatral do futuro, parece de algum modo comprometida.

O Roman dizia isso como prenúncio do que o teatro de marionetas poderia vir a ser, e tinha razão.. Ele constatava que o teatro dito “convencional” se mantinha num certo limbo arcaico, com alguma dificuldade ou constrangimento na reação às novas linguagens, da imagem, do corpo e outras, e que o teatro de marionetas, justamente por estar no limite e na fronteira de muitas linguagens artísticas, e por ser um tipo de representação muito imagético, teria condições privilegiadas para constituir uma transversalidade perfeita dessas artes, afirmando-se quase como uma nova arte.

Como explicas a não confirmação desse prognóstico?

Penso que a seguir a uma época de grande afirmação e explosão criativa, como acontece ao longo de toda a história da arte, se está a assistir a um momento de retração e de ressaca criativa. Por exemplo, contemporâneo desses anos de grande criatividade foi o próprio Kantor, que era alguém muito interessado nas marionetas, a que ele preferia chamar manequins, pelo lado da sua imutabilidade, da sua máscara mortuária. Ele chegou a dar um curso importantíssimo no Instituto Internacional da Marioneta. Mas um dos grandes paradigmas desta situação atual é o próprio Philipe Genty. E a dança contemporânea também vive um pouco esta ressaca de um certo boom criativo. A Pina Bausch poderá ser também um exemplo. Ambos foram geniais nas suas áreas. E a Pina Bausch está para a dança contemporânea como o Philipe Genty está para uma certa contemporaneidade do teatro de marionetas. O Philipe Genty esgotou completamente a sua fórmula, dedicando-se a espetáculos puramente comerciais, que alimentam uma organização poderosa que ele montou, e os espetáculos da Pina Bausch, os que eu tenho visto ultimamente, constituem, custa-me a dizer pela grande admiração que tenho por ela, constituem uma espécie de “declínio”, dentro das fórmulas que ela brilhantemente inventou de fazer teatro.

Gostaríamos que explicasses um pouco melhor ou desenvolvesses um pouco mais tanto a fórmula sugerida para caracterizar a evolução do Teatro de Marionetas do Porto, “entre a tradição e a modernidade”, como uma outra declaração tua, que parece muito sugestiva, de que vocês fariam menos um “teatro de marionetas” e mais um “teatro com marionetas”.

A nossa forma de fazer teatro assenta fundamentalmente na ideia de expor aos olhos do público a marioneta e o ator em relação íntima com os outros elementos cénicos, e explorar a dialética que daí advém. Neste contexto seria altamente restritivo usar só as marionetas, porque a marioneta não pode existir teatralmente sem o ator, elemento essencial da teatralidade. E o que é belo e ao mesmo tempo brutal nisto tudo é o confronto entre os atores e as marionetas: tanto um ator que manipula uma marioneta, como um ator que contracena com uma marioneta ou como os atores que vivem no mesmo universo, quase onírico, das marionetas. É todo este jogo, muito sedutor, toda esta dialéctica, de vida e de morte, de existência efémera, que pode provocar um estado especial em quem assiste a um espetáculo.

E é inequívoco que as pessoas que trabalham contigo nos espetáculos são atores e não puros e simples manipuladores?

São atores, bailarinos, cantores, têm que ter todas as qualidades de um intérprete no sentido global. Porque o que fazemos exige essa disponibilidade. O trabalho de manipulação é uma valência que eles adquirem depois. Qualquer bom ator que se identifique com este tipo de linguagem do teatro de marionetas facilmente encontra, perante o objeto inerte, uma energia que lhe permite transferir a sua energia interpretativa para a marioneta, ou objeto cinético, como às vezes preferimos chamar.

Como surge este teu regresso ao António José da Silva, com Os encantos de Medeia?

Eu tenho uma admiração enormíssima pelo António José da Silva. Eu, muito radicalmente, acho que houve três dramaturgos em Portugal: o Gil Vicente, o António José da Silva e o Almeida Garrett. É um caso único no mundo, um dramaturgo desta importância que tenha escrito para marionetas. Além disso acho que ele é muito parecido comigo, com todos nós que andamos nestas vidas do teatro. Ele era um tipo que gostava muito de teatro, que infelizmente morreu cedo, vítima da horrível Inquisição, extremamente culto, quase com um curso de advocacia, que conhecia profundamente todo o teatro que o antecedia, o grande teatro espanhol, toda a mitologia grega e as questões do pensamento filosófico dos séculos XVII e XVIII. Alguém que, com os seus amigos, pintores, músicos, escultores, atores, etc, construiam espetáculos que deliciavam o público da Lisboa setecentista. E com uma cadência parecida com a nossa, porque eles faziam duas peças por ano. O Judeu tem uma escrita muito funcional, como a que encontramos no Shakespeare e no Gil Vicente, autores que escreviam para as suas companhias. Dá para perceber que uma determinada ária ou um monólogo surge para dar tempo a que os outros atores se recomponham ou para que os cenários pudessem correr. Esse lado de artesão, que eu reivindico muito para o espírito do artista, do fazedor de teatro, é também o que me faz gostar tanto do António José da Silva e que me levou a regressar ao seu universo, depois de já ter feito a Vida de Esopo, em 1989. E porque, de vez em quando sinto uma certa necessidade de regresso a um “teatro de texto”.

O que vai contra algumas afirmações tuas sobre o “fardo” dos textos no teatro…

Porque acho convictamente que um dos problemas no teatro contemporâneo é ainda não ter largado o lastro do texto… Eu consigo amar um espetáculo como o Macbeth, do Nekrosius, assente numa intervenção violenta sobre o texto de Shakespeare, mas no qual ele projeta a sua identidade criativa. O problema de muito teatro de texto que se faz é que se limita a pôr o texto em cena, mas os artistas que o fazem, esses, não se põem em cena. O que limita os espetáculos a veicular as ideias do autor do texto. Para isso, eu leio o texto em casa. Eu gosto de um teatro no qual os seus criadores, para além do dramaturgo, não se demitem de se projetarem ética, estética e políticamente no acto teatral. Deixando uma marca de si no palco, como o pintor deixa na sua tela. Nisso consiste essencialmente, quanto a mim, a questão da contemporanização dos textos. Quando isso não acontece o teatro resume-se a umas pessoas a falarem umas com as outras sobre as ideias de outros.

Mas o exemplo que estás a dar limita-se ao papel decisivo que teve a reinvenção dos clássicos em todo o percurso da criação teatral do século XX, que é algo, apesar de tudo, distinto daquilo que pode acontecer na relação que o teatro tem com a dramaturgia contemporânea. E tu também já fizeste declarações em que lamentas a “inexistência” de uma dramaturgia portuguesa contemporânea capaz de refletir sobre nós. Por isso, talvez que o que estejas a questionar seja menos o papel do texto na criação teatral, mas antes o entendimento do que é ou pode ser para ti um criador teatral, na linhagem de grandes precursores como o Meyerhold ou o Craig. Um dos teus mais “gloriosos” espetáculos, e um daqueles mais dramaturgicamente coerentes, foi, nem mais, o Macbeth!

Sim, talvez a minha reação ao texto tenha mais a ver com o “excessivo papel do texto na criação teatral”, com o facto de muitas vezes ele esmagar os outros signos teatrais. Além disso o texto teatral não pode ter um valor puramente semântico. Encarado de uma perspectiva não naturalista o texto tem outras valências poderosas. Quando no Paisagem Azul com Automóveis, uma criação que reflete sobre a nossa condição pós-moderna , eu uso texto em inglês esse facto passa a ser um signo cénico importantíssimo. E o que me agrada é buscar outros sinais contidos no texto, até mesmo triturá-lo, transformá-lo, em busca de uma versão que se adeque à minha visão, à minha obcessão. Eu permiti-me liberdades no Macbeth que acho que, desse ponto de vista, são legítimas…

A única que não terá sido perdoável foi a da redução das bruxas a duas, eliminando a lógica do número três!… Todas as outras terão sido maravilhosas!

Confesso que tinha problemas de elenco- éramos apenas quatro a fazer dezenas de personagens. E tinha visto a versão cinematográfica do Polansky, em que ele põe a terceira bruxa muda, e eu achei que o essencial do que estava ali, apesar da magia associada ao “três”, se fazia com dois. E como eu tento sempre reduzir os textos ao essencial… Mas, ainda sobre o texto, a minha reação também tem a ver com aquilo que eu chamo de “teatro com estreia marcada”. Envolve muito menos riscos fazer teatro a partir de textos, quando não se opera uma nova visão sobre essa realidade dramática. Eu adoro textos de teatro. E tenho uma admiração enorme por alguns dos novos dramaturgos contemporâneos, como a Sarah Kane, o Martin Crimp ou o Gregory Morton. Claro que quando encenei Gregory Motton, para os Visões Úteis, não estava nada interessado em “partilhar” com o autor a sua denúncia do tatcherismo. Os meus problemas eram parecidos mas eram outros…

Desde que esse posicionamento não resulte num “perverso”, ainda que involuntário, silenciamento ou condenação da diversidade necessária à realidade da criação teatral, estamos todos de acordo!

Claro! No fundo eu estou a mandar umas bocas que me fazem refletir sobre a minha prática teatral, onde sinto tantas certezas como incertezas. Mas há tantas formas de fazer teatro! Eu encaro-o numa perspectiva mais performativa e, se quiseres, política. Talvez que aquilo a que eu reajo mais seja à sobrevivência de um certo naturalismo ou de um teatro apolítico e inócuo que não forma massas críticas. Um teatro que “não perturba os nossos sentidos”, como dizia Artaud.

O que é tão mais compreensível quanto o teu trabalho assenta numa pesquisa constante de novas formas cénicas. Como sugerias, cada espetáculo do Teatro de Marionetas do Porto, para lá de toda a aprendizagem acumulada, constitui quase sempre uma nova aventura. Regressando a Os encantos de Medeia, quais foram as tuas linhas de ação sobre este novo António José da Silva.

Reduzi bastante o texto, porque me parece que o tempo de representação era muito diferente há trezentos anos. Mas também porque gosto muito de uma certa intensidade cénica. Cortei muito, muitas falas. Mas ainda assim o espetáculo ficou com 1h40m, quando a versão integral poderia durar quase duas horas e meia ou três horas. Depois o que fizemos, em relação ao que eu imagino que o António José da Silva faria no seu teatro, foi passar do seu pequeno teatro de dois metros, com os atores e a maquinaria escondidos, para um espaço de representação com nove metros, tirando tudo, deixando as mecânicas à vista, como se tivessem tirado os cortinados. Introduzi dois contrarregras à vista, que substituem os tramoistas da época, dentro desta lógica de expansão do espaço, acompanhada de uma redução funcional do texto e da recuperação de uma certa inspiração barroca a nível da música, tirando partido dos conhecimentos do Roberto Neulichedl. E depois há mais algumas pequenas ousadias, principalmente, para o final do espetáculo, naquelas partes em que eu teria mais dificuldade em reproduzir o ambiente fantástico da peça e concretizar os exageros do teatro barroco, como quando o António José da Silva diz “Vem Medeia num carro puxado por dragões”, ou “cantam as sereias sobre as ondas do mar”… Como eu queria que este espetáculo fosse bastante mecânico, capaz de reproduzir algumas das sugestões fantásticas da peça e do universo da cena barroca, construí uma máquina capaz de responder aos ambientes das ondas do mar, das trovoadas, das viagens da Medeia no céu, etc. O que eu senti necessidade neste espetáculo foi de assegurar a comicidade do texto do António José da Silva, reforçando o espírito de grupo, apostando nalguma improvisação e tentando que isto seja um grande gozo para quem vê!

De algum modo, a tua preferência por determinadas linguagens mais contemporâneas parece verificar-se mais quando apostas na criação de espetáculos cujo projeto dramatúrgico está mais voltado para a exploração do que tu próprio apresentas como a angústia da condição humana na contemporaneidade ou na pós-modernidade?

Exatamente. Talvez seja por isso que os espetáculos que criamos para público infantojuvenil não sejam tanto “banco de ensaios”. Eu nunca consigo uma démarche tão experimental nos espetáculos infantis, porque nunca consigo fazer um espetáculo sem texto. Se calhar isto é uma grande contradição mas… De qualquer modo, penso que o que caracteriza essas linguagens contemporâneas de que falas é uma certa postura anti-aristotélica, tanto na dimensão anti-mimética, como numa certa desagregação do tempo e do espaço. É isso que me parece interessante na arte contemporânea que se aventura numa onda não-figurativa, nos domínios do teatro, da performance, da dança, etc. A marioneta vive muito bem nesse mundo e recusaria sempre outro tipo de tratamento. E isto explica também porque nunca trabalhamos com marionetas de fios, porque são as que se aproximam mais do comportamento humano. A marioneta, na sua condição de duplo, está desde logo a afastar-se de qualquer ideia de imitação…

Curiosamente, no modo como vieste privilegiando a manipulação à vista e a presença do corpo do intérprete, para além de romperes com qualquer resíduo mágico da marioneta, conseguiste também ampliar os recursos expressivos da própria marioneta.

Embora nós graduemos sempre a presença da presença do manipulador ou do intérprete, com importantes consequências dramatúrgicas. Esse era um aspeto de que as pessoas falavam muito, por exemplo, a propósito do Macbeth. O espectador acabava por articular, sincreticamente, a expressão da marioneta e a do próprio intérprete. Mas, para mim, o fulcro de toda a questão é justamente a da ilusão consciente, que é muito visível no teatro bunraku…

Tens alguns espetáculos preferidos ao longo de todos estes anos?

O Miséria é um espetáculo que me diz muito, que eu carrego comigo e que, de cada vez que o faço, o faço com muito gozo. Acho que os espetáculos em que eu entro são aqueles que me deixam melhores memórias… Mas talvez considere que o espetáculo que mais horizontes nos abriu tenha sido o Exit, em 1998. Foi o primeiro espetáculo daquilo que eu chamo o “ciclo urbano”, e permaneceu como o mais verdadeiro, até ao nível do nome da personagem, o Pixel….

Que outro tipo de textos gostavas de fazer com marionetas?

Gostava de fazer uma tragédia clássica, talvez um Eurípides. Gostava de fazer mais Shakespeare, porque são textos que se adaptam muito bem ao universo da imagem, com histórias fantásticas, em torno do poder, do amor e da morte e com muita ação interior e exterior e pouca psicologia.

E nada do século XX?

Sim… Tenho um grande amor por Beckett. Ah, o Nada ou o silêncio de Beckett, de 1999, é um dos meus espetáculos preferidos. Eu, na altura, quis fazer um espetáculo com bastante texto de Beckett, mas o representante dos seus direitos em Londres não autorizou, disse que só podia fazer os Ato sem palavras I e II… Eu tinha chegado a pensar que uma boa parte do espetáculo fosse o À espera de Godot e os Dias Felizes, em que faria uma decomposição e uma reconstrução dos dois textos. mas depois comecei a deixar-me seduzir pelo lado fabuloso do universo beckettiano, motivado pelas muitas imagens e sons que tudo aquilo me sugeria. Também gostava um dia de fazer A Casa de Bernarda Alba, com uma estética pura de bunraku, uma coisa bem japonesa. Relativamente a textos mais contemporâneos… tenho-me sentido mais atraido por textos não-teatrais, principalmente spoken word, que é uma forma muito política e forte de falar do mundo. No teatro, acho que, no fundo, prefiro os clássicos.