O Primeiro de Janeiro

03 de setembro de 2001
Texto e entrevista: Andreia Marques Pereira
fotos: Alfredo Nogueira

Daqui a quatro anos, no máximo, o Teatro de Marionetas do Porto (TMP) despede-se do Teatro de Belomonte e muda-se para um novo edifício, construído de raiz, na marginal do Douro. Aí será criado um museu de marionetas, a partir do espólio que a companhia foi reunindo ao longo dos anos. Até que isso aconteça, o TMP continuará a percorrer os trilhos mais experimentalistas do teatro de marionetas, expandindo os horizontes e desafiando a tradição desta arte milenar, que, no dealbar do novo mulénio, parece ser a que congrega melhor a transversaliade e o encontro das novas linguagens cénicas. Por tudo isto, João Paulo Seara Cardoso, diretor artístico do TMP, não tem dúvidas de que “teatro de marionetas é a arte do próximo século”.

“O Primeiro de Janeiro” – Foi recentemente assinalado com Câmara Municipal do Porto um protocolo para a cedência de um terreno destinado à construção de um novo edifício para o Teatro de Marionetas do Porto (TMP). Como decorreu esses processo?

João Paulo Seara Cardoso – Estamos há oito anos no Teatro de Belomonte, que é um edifício muito bonito e um ótimo espaço de trabalho, mas que desde há alguns anos se vem revelando exíguo para as nossas atividades. O Teatro de Belomonte, no entanto, a particularidade de ser o único teatro que existe no centro histórico do Porto. Portanto, quando eu falei com um grande amigo do TMP, o arquiteto Rui Losa, que é o diretor do CRUARB e um grande apoiante da nossa atividade ali, dizendo que nos íamos mudar, ele disse: vocês não saem do centro histórico, porque o TMP é uma associação fantástica aqui e nós queremos que, cada vez mais, o centro histórico e a Ribeira se abram a outras atividades que não só a diversão noturna. Queremos, sobretudo, que se criem aqui novos focos de cultura, sejam galerias de arte, teatro, seja o que for, e, por isso, vamos ver o que se arranja”. Numa manhã equacionamos varias hipóteses, fomos ver algumas coisas e de repente ele sugeriu o terreno do sucateiro, que é um terreno que a câmara comprou para desalojar porque dava mau aspeto à marginal do Porto. Foi isso que se passou. O terreno foi depois pedido à câmara e cedido numa reunião do executivo municipal, por unanimidade. Neste momento já existe, realmente, um protocolo assinado.

“PJ” – Além do novo edifício, o TMP pretende abrir um museu de marionetas.

JPSC – O museu é um projeto já muito antigo. Ao longo de 12 anos de atividade, reunimos um espólio muito grande, cerca de 500 marionetas, e já pensávamos fazer um museu. Mas conservar o Teatro de Belomonte e fazer um museu à parte não nos pareceu bem. Um novo edifício, que congregue tudo o que atualmente está disperso e com a novidade da abertura de um museu, é o ideal. Além de que um museu de marionetas no centro histórico será algo de superatractivo para as pessoas. Depois, este museu terá uma parte muito curiosa. O terreno onde vai ser construído o novo edifício está encaixado no meio de casas e, por trás, é limitado pela parede do Convento de Monchique. Acontece que o terreno entra por debaixo do Convento e essa parte, que é uma grande cripta, onde, supostamente, existiriam celas de freiras, pertence-nos. Vamos aproveitar esse espaço, que será dedicado à história das marionetas e onde se iniciará o percurso museológico. Penso que será uma parte muito mágica do museu.

“PJ” – Quais serão as outras valências do edifício-sede do TMP?

JPSC – Estas não serão instalações pequenas. Teremos uma sala de espetáculos maior do que a que temos atualmente – que tem capacidade para 50 pessoas -, e que segue o modelo do que eu chamo salas modernas, limita-se a uma bancada ara 160/170 pessoas e a um palco polivalente. Como uma parte fundamental da nossa atividade são as oficinas, que é onde temos desenvolvido técnicas novas, formas de construção de marionetas, de cenários, estudo de materiais, damos uma grande importância a este setor. Terá também um bar-restaurante no último andar, com vista para o Douro e para a encosta de Gaia, uma paisagem idílica, naturalista, com vacas e tudo…logo abaixo dos centros comerciais. E claro, haverá uma parte administrativa e os armazéns.

“PJ” – Sendo um projeto dessas dimensões decerto que envolverá muito dinheiro. De onde vem o financiamento?

JPSC – O que posso dizer é que, neste momento, o arquiteto José Gigante tem o anteprojeto praticamente concluído e que será apresentada uma candidatura ao Plano Operacional da Cultura (POC)antes do fim do ano, que e a única forma de conseguir que o projeto vá para a frente. Mas o financiamento do POC, que cobre até 75 por cento do projeto, não é suficiente. É fundamental que a Câmara Municipal do Porto e o governo, através do Ministério da Cultura, se interessem pelo projeto e o apoiem.

“PJ” – Já foram estabelecidos contactos nesse sentido?

JPSC – Já há contactos nesse sentido mas estou a atrasar os contactos formais para quando tiver o projeto na mão. Assim as pessoas terão noção do que é que se vai construir e do que é que se vai gastar.

“PJ” – E para quando está previsto o adeus ao Teatro de Belomonte?

JPSC – Prevê-se que seja, o mais tardar, daqui a quatro anos.

PORTO: CAPITAL PORTUGUESA DAS MARIONETAS

“PJ” – O Teatro de Belomonte foi o primeiro espaço do género em Portugal dedicado exclusivamente às marionetas. Há alguma relação especial entre o público do Porto e as marionetas? Há algum segredo para o êxito do TMP?

JPSC – O porto é, neste momento, um pouco a capital das marionetas em Portugal, em termos de interesse público, por exemplo. Acho que nós, estou a falar em termos da companhia, temos uma maneira de fazer as coisas que desde o início começou a atrair o público. Recordo-me perfeitamentede que quando começámos, há 12 ou 13 anos, as marionetas eram vistas como uma arte menor, que se fazia nas escolas. Rapidamente, com dois ou três espetáculos, tudo mudou. De repente começámos a ter êxitos de público e, atualmente, temos uma corrente de público – público de teatro e outros fiéis seguidores, que nos seguem à muitos anos -, que atinge muitos milhares de pessoas. Penso que é das maiores correntes de público que existirá nesta cidade.

“PJ” – E pode distinguir-se algum público específico?

JPSC – É difícil responder porque a nossa atividade é multifacetada. A nossa estratégia anual é fazer um espetáculo para crianças e outro para adultos. Isso provoca uma variação de tipo de público enorme. O nosso público fundamental para os espetáculos infantis são, à semana, crianças de estabelecimentos escolares e, ao fim de semana, crianças, famílias – é fantástico ver famílias completas nos nossos espetáculos. Quando fazemos espetáculos à noite é para aquela camada de público normalmente jovem. Nos últimos espetáculos tivemos público muito jovem. Aliás, num (“Os 3 Porquinhos”) em que quisemos mesmo atingir esse escalão etário, as sessões eram à meia-noite, no Teatro Rivoli, e estiveram sempre esgotadas. Essa conquista de público sentiu-se no espetáculo “Macbeth”, que teve lotações esgotadas durante um mês, com muito público à volta dos 20 anos. Depois a nossa oura faceta que ainda faz variar mais o público é a itinerãncia. Andamos muito por aí com as coisas às costas.

“PJ” – E a itinerãncia é, tradicionalmente, um dos próprios fundamentos do teatro de marionetas.

JPSC – Tradicionalmente, diz bem. Um dos pesos da tradição é esse. Mas o espetáculo que estamos a fazer neste momento (“Paisagem Azul com Automóveis”), destroí completamente esse conceito de teatro transportável às costas. Este espetáculo que estamos a fazer no Teatro Nacional S. João dificilmente poderá ser feito noutro teatro em Portugal, porque aí temos condições técnicas acima da média.

“PJ” – Não se perde um pouco do encanto original das marionetas nos novos caminhos que se estão a seguir?

JPSC – Perde-se e ganha-se. Se continuarmos nos caminhos antigos, o teatro transforma-se em arqueologia. Eu considero que nós somos uma companhia que guarda a tradição e procura a modernidade. Quero dizer que nós começámos com as tradições – hoje em dia ainda fazemos o teatro mais antigo de fantoches que existe em Portugal, que é o teatro Dom Roberto -, ao mesmo tempo que fazemos espetáculos mais contemporâneos.

“PJ” – Como encaixam o teatro Dom Roberto na matriz experimentalista que caracteriza o trabalho do TMP?

JPSC – Nós mantemos o teatro Dom Roberto como uma mera curiosidade, embora eu o considere uma pérola da cultura portuguesa. Faço teatro Dom Roberto à 25 anos, ininterruptamente, já faz parte de mim. É curioso eu pensar que comecei por aí…Mas de qualquer modo, uma das minhas obsessões, enquanto criador teatral, é que o teatro tenha a ver com a vida das pessoas. Noutros tempos teve. Ultimamente não tem tido. Há pouca produção de textos e há dificuldade em encontrar novas formas contemporâneas de teatro. Muito mais facilmente a dança contemporânea conseguiu essa linguagem moderna que vai ao encontro das pessoas e desbrava novos terrenos. Neste momento, entre as artes performativas, o teatro é visto como a mais arcaica: são umas pessoas num palco, vestidas, a falarem umas com as outras. É essa a ideia que as pessoas têm.

“PJ” – Ultimamente já se veem espetáculos teatrais que incorporam uma diversidade de linguagens cénicas.

JPSC – Mas isso nos espetáculos estrangeiros. Se olhar para a realidade portuguesa, isso é de louvar mas muito raro. Em Portugal, o teatro não encontra rumo. Hoje assiste-se a um surto enorme de novas companhias e de novos criadores, mas, infelizmente, não de novas ideias.

“PJ” – Aqui no Porto há algumas companhias com ideias bastante interessantes…

JPSC – Sim, há algumas. Mas são uma minoria. Penso que há vinte e tal companhias novas no Porto e poucas são as que têm feito pequenas revoluções.

MARIONETAS COMO ESTADO DE ESPIRÍTO

“PJ” – Voltando às marionetas. A noção de marionetas tem evoluído ao longo dos anos. Por exemplo, a própria representação antropomórfica tradicional está a ser ultrapassada.

PJSC – Sim, e esse é um caminho que eu gosto muito de explorar. Que as marionetas já não sejam homens, mulheres, personagens concretas, mas que sejam estados de espiríto. Abre imensas possibilidades: a partir do momento em que eu faço uma marioneta que não é o Senhor José mas o medo, abrem-se as possibilidades de movimento novas e é muito por aí que temos ido ultimamente.

“PJ” – O que revoluciona todo o conceito do espetáculo…

JPSC – Sim, sim… Quando nós neste último espetáculo (“Macbeth”) fizemos figuras dos personagens da peça, quisemos não só retratar os personagens mas que elas fossem quase o símbolo de um tipo humano e que, nesse sentido, os traços refletissem o interior das pessoas e não só o que vemos de fora. É essa coisa que é fantástica nas marionetas, a possibilidade de modelar os personagens.

“PJ” – Outro aspecto que está a mudar é a relação entre os atores e as marionetas. O convívio entre atores e marionetas no palco tem sido a prática formal do TMP, mas na nova produção (“Paisagem azul com Automóveis”) essa opção é mais radical.

JPSC – O teatro de marionetas está muito ligado às tradições e custou muito aos criadores libertarem-se dessa herança da tradição. O primeiro passo dado nesse sentido foi o fim da barraca, que, ao fim e ao cabo, era o que escondia as pessoas. O espaço rasga-se (passa a ser um palco enorme), deixa de haver limites de espaço e o público passa a ter uma leitura dupla da dialética que se estabelece entre um ator e uma marioneta. Esta é uma situação fantástica e durante muitos anos o TMP especializou-se – dentro desta área que se chama manipulação à vista – numa coisa que se chama teatro sobre a mesa: nos nossos espetáculos, o cenário passou a ser quase sempre o chão. Mas nós fartamo-nos rapidamente de fazer sempre as mesmas coisas, por isso, para este espetáculo decidimos imaginar que as marionetas não têm nada onde pousar: ou voam, que é uma das características delas muito explorada nos espetáculos, ou quando precisarem de pousar, pousam em cima dos corpos das pessoas que as animam. É mais ou menos este o princípio técnico desta criação: uma pesquisa das relações do nosso corpo com o corpo da marioneta, sem mais nada, no vazio absoluto.

“PJ” – E há espaço para o convívio entre os atores e as marionetas?

JPSC – O teatro sempre se debateu com o grande paradoxo de representar a vida, utilizando seres vivos. Mas nunca há o distanciamento suficiente para representar uma vida que eu vivo. A partir do momento em que se cria um duplo de mim, que é a marioneta, a distância à sua vida é maior. E eu acredito que quando a representação é feita por duplos, a ressonância na minha vida é mais forte, mais eficaz, mais legível, mais visível. Eu penso que nesse aspeto é muito bonita a ligação às raízes ancestrais das marionetas, sobretudo na Índia e na China, onde elas foram criadas. As marionetas surgiram para se fazerem representações para os deuses, porque um simples humano não podia expor-se ao divino. Eram sempre representações propiciatórias, em que as pessoas se mascaravam tanto e tinham códigos gestuais tão estilizados, que se afastavam do comportamento humano. A alternativa era a criação de figuras como as marionetas, as sombras e as máscaras – tudo formas inventadas para despersonalizar o homem, para lhe retirar o carácter humano. Ao fim e ao cabo, é a antítese do naturalismo teatral, que é algo de que eu gosto. Eu prefiro que exista uma subtileza maior na representação, que se dê mais trabalho ao público.

“PJ” – Falou das raízes das marionetas. E qual é o futuro?

JPSC – Recentemente, durante o Festival de Marionetas do Porto, o diretor do Instituto Internacional das Marionetas disse numa entrevista, que considerava que o teatro de marionetas seria a arte do próximo século. Porque é a que neste momento tem um carácter mais universal, congrega melhor a transversalidade e o encontro das linguagens contemporâneas. Por estes motivos, estou inteiramente de acordo. Neste momento, há criadores de marionetas que sintetizam muito bem o teatro da época em que vivemos. Além disso, o acréscimo recente de público para os espetáculos de marionetas, não só em Portugal como em toda a Europa, aponta nesse sentido.